Após uma onda de democratização, ocorrida entre 1977 e 1990, a América Latina experimenta, atualmente, um crescente desencanto com a democracia. Embora 60% dos latino-americanos ainda prefiram a democracia a outras formas de governo, apenas 37% se declaram satisfeitos com o seu funcionamento, marcado pela fragilidade do Estado de Direito e por crises econômicas cíclicas, que levam ao descontentamento popular, à instabilidade política e à estagnação econômica.
No cenário econômico, depois de um período de expansão, entre 2003 e 2012, devido ao boom das commodities, como minerais, petróleo e alimentos, impulsionado pela demanda chinesa, período em que a alta de preços internacionais de tais produtos elevou o crescimento anual médio da Região para de 4,1%, a mesma passou a registrar um crescimento nanico, à média de 1% ao ano, devido à baixa produtividade, agravada pelo excesso de regulamentação; a corrupção endêmica; e o crescente endividamento do Estado, que eleva às alturas a taxa de juros, inviabilizando o investimento na produção e o consumo.
O cenário econômico desfavorável e a sensação de impunidade diante da corrupção exacerbam a crise de representação política e criam o ambiente em que florescem os populismos de extrema esquerda e de extrema direita, em prejuízo dos partidos de centro, moderados, dando lugar à polarização política. Os populistas, de ambas as vertentes extremistas, ao chegarem ao poder, tendem a minar os freios e contrapesos da democracia, em prejuízo do Estado de Direito, muitas vezes evoluindo de autocratas eleitos para ditadores, que passam a fazer uso da repressão.
A corrupção e a sua impunidade cobram um alto preço na América Latina, provocando o ceticismo da população em relação às instituições do Estado de Direito. A Operação Lava Jato expôs a escala da corrupção em toda a América Latina e desnudou a fragilidade das institucionais de compliance da Região. A exposição de esquemas de corrupção sistêmica no Brasil, Peru, Equador, Colômbia e Argentina, além do México, contribuiu para o profundo desencanto da população com a classe política e com a democracia na Região, passando a sensação de que toda a classe política é corrupta e de que as instituições democráticas são falhas.
No Brasil, depois da Lava Jato levar ao impeachment de uma presidente e à prisão de um expresidente, ambos ligados aos crimes investigados na operação, a mesma veio a sofrer um revés mais espetacular do que aquele visto operação Mani Pulite (Mãos Limpas), na Itália. O ponto de inflexão da operação foi a reportagem publicada na revista Crusoé, em 11/04/2019, sob o título “O amigo do amigo de meu pai”, em que se revelaram e-mails da Odebrecht que associavam o então presidente do STF ao empreiteiro Marcelo Odebrecht, o que provocou uma reação imediata pelo STF, que mandou retirar a matéria do ar, em um ato de censura sem precedentes na redemocratização do país.
Seguiu-se o contra-ataque do ancien régime, com a anulação das provas da Lava Jato, obtidas por meio do acordo de leniência da Odebrecht, atingindo a maioria das investigações da operação, a suspensão de multas bilionárias impostas à Novonor (ex-Odebrecht) e à J&F e a anulação das condenações, inclusive aquelas que pesaram sobre o ex-presidente preso.
O engajamento do STF neste processo, iniciado como uma reação corporativa à investigação de um de seus membros, em seguida ganhou contornos de uma manobra política-judicial estratégica para preservar a ordem constitucional contra um movimento de direita nostálgico do regime militar, que ameaçava reinstalar um regime de exceção no país, contando com o apoio de parte da população.
Para tanto, o STF anulou as múltiplas condenações contra o ex-presidente preso e restabeleceu os seus direitos políticos no timing exato para impor à direita um forte oponente político, o que se fez com grande prejuízo do prestígio institucional da Suprema Corte, o qual repousa na sua isenção e na percepção popular de que suas decisões são baseadas estritamente na lei e nos fatos, independentemente de seus efeitos político.
A percepção popular de que o STF atua em cooperação com o atual governo e compartilha com o mesmo o adversário político, o movimento populista de direita, tornando-se um ator político com preferências ideológicas, compromete sua capacidade de funcionar como um árbitro imparcial, em um país profundamente dividido, o que se constitui num fator de enfraquecimento das instituições democráticas.
Na ânsia de evitar um retrocesso institucional, o STF desviou-se de sua função primária, que é a aplicação fria e técnica do Direito, para intervir diretamente na política partidária, além de praticar a censura por motivos corporativos, o que, ao contrário de defender a democracia e a Constituição, reforçou a visão de que as instituições democráticas são falhas, beneficiando, ironicamente, o discurso populista que o STF busca combater.
O objetivo final (a preservação da democracia e do Estado de Direito) só pode ser verdadeiramente alcançado através de meios que sejam, eles próprios, justos e virtuosos (isenção, transparência, respeito à lei). Se o Poder Judiciário recorre a meios que prejudicam a liberdade de imprensa e a isenção institucional, ele não está criando uma sociedade justa, mas sim um precedente de arbítrio. A vitória sobre a autocracia por meios arbitrários apenas substitui um tipo de autoritarismo por outro, corroendo a própria virtude democrática que se pretendia salvar.
Num Estado de Direito, a autoridade reside na lei, não na conveniência do resultado. Cícero, na antiguidade, já ensinava que a lei é soberana: “Nós somos servos da lei para que possamos ser livres”, ele dizia.