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Lendas urbanas ressaltam a cultura de um povo em manifestações populares

Lendas de Teresina atravessam gerações e refletem o contexto social, mas correm o risco de se perder na história.

23/08/2025 às 12h13

23/08/2025 às 12h13

Pessoas que cresceram em Teresina, especialmente entre as décadas de 1970 e 2000, dificilmente não ouviram falar em histórias como Cabeça de Cuia, Não Se Pode, Porca do Dente de Ouro ou Negão da Macaúba. Narradas de pais para filhos, nas rodas de conversa nas praças e calçadas e até mesmo em sala de aula, essas lendas marcaram a infância de muitos teresinenses. Mais do que causos fantásticos, elas carregam um peso simbólico, tratando de temas pertinentes à sociedade antiga e atual.

Essas histórias, geralmente em entrelinhas, tratam de violência, pobreza, machismo e outros aspectos da vida social de diferentes épocas da capital piauiense, do estado e do país. Hoje, a tradição oral que manteve essas histórias vivas durante dezenas de anos parece estar cada vez mais fragilizada. Para o professor de história Raimundo Oliveira, essa mudança é reflexo da evolução das formas de comunicação. “As lendas sobrevivem da contação, de pessoas contando umas para as outras. Isso tem reduzido muito com a internet, o que afastou a juventude. Os jovens deixaram de ouvir os avós, os pais”, comenta.

O historiador afirma que a perda do hábito de reunir a família acabou, também, desagregando as relações e a tradição de contar histórias. “As pessoas foram se ocupando, com trabalho, estudo, e acabou quebrando um pouco essa relação muito familiar de sentar na calçada e contar histórias. E essa perda se dá exatamente por essa estrutura de poder econômica, social, que foi mudando ao longo do tempo. Como as lendas mudam, também”, diz. Segundo Raimundo, a tendência é que essas lendas sejam vistas com configurações cada vez mais diferentes, de acordo com mudanças da sociedade que está sendo montada.

Raimundo Oliveira, professor de história. - (Assis Fernandes/ O Dia) Assis Fernandes/ O Dia
Raimundo Oliveira, professor de história.

O FOLCLORE E A CRÍTICA SOCIAL

Ao contrário dos mitos, que tentam explicar fenômenos da natureza, as lendas se originam de fatos locais (reais ou supostos) que vão sendo fantasiados e alterados ao longo do tempo. É o caso, por exemplo, da Não Se Pode, que começou a ser contada no início do século XX, quando a iluminação pública de Teresina ainda era feita por lampiões a gás.

“Naquela época, a elite cultural do Centro usava essa figura fantasmagórica para afastar daquele espaço pessoas consideradas marginalizadas. Hoje, a gente já traz a Nâo Se Pode como um personagem feminino que se empodera, que ocupa os seus espaços na sociedade, há uma nova conotação” comenta Raimundo.

O Cabeça de Cuia, talvez a lenda mais popular entre os teresinenses, muito devido ao seu monumento na Zona Norte da capital, também revela mudanças no olhar da sociedade sobre certos assuntos. Originalmente, a história falava de um pobre pescador da Vila do Poti que, em meio à fome e à miséria, agrediu a própria mãe, um ato que parecia ser naturalizado pela cultura ainda mais patriarcal da época. “Hoje, a lenda é relida como metáfora para discutir temas como feminicídio, violência contra a mulher e pobreza. Ela se adapta ao novo contexto social”, ressalta o professor.

Outras histórias também muito contadas na capital, como a da Porca do Dente de Ouro e a do Negão da Macaúba, trazem marcas da segregação social, do racismo e do machismo, muito presente em Teresina (e no resto do país e do mundo) nas décadas passadas, ainda mais do que atualmente. “A lenda vai se adaptando aos novos processos. Ela nunca perderá a capacidade de ser contada, mas a partir da forma que a sociedade está se organizando. Ela não perde o seu efeito, ela se transforma e se adapta àquele novo contexto”, afirma.

NOVAS GERAÇÕES E NOVAS HISTÓRIAS

Lendas urbanas ressaltam a cultura de um povo em manifestações populares - (Reprodução/Flickr) Reprodução/Flickr
Lendas urbanas ressaltam a cultura de um povo em manifestações populares

Para o professor de história, essas mudanças que vêm afetando a como as lendas urbanas são disseminadas não significam o fim dos contos, mas sim uma necessidade de adaptação. É preciso, sim, manter as lendas e seus simbolismos vivos, especialmente para a juventude de hoje. “O que precisamos é continuar passando essas histórias, ressignificando-as de acordo com os problemas de hoje”, destaca.

Um caminho apontado pelo pesquisador é a valorização das lendas locais no ambiente escolar. “Seria interessante que as escolas trabalhassem essas narrativas, não apenas com leitura, mas com teatro, música, montagem de cenários. As secretarias de educação têm um papel fundamental nisso. É a nossa história que está em jogo e é preciso trazer o debate para perto da comunidade”.

Raimundo Oliveira afirma que a tradição das lendas urbanas ainda pode ser revivida na geração atual, também com a criação de novas histórias. Para ele, esse é um processo que só acontece com o passar do tempo. “Uma lenda nasce de um acontecimento que se amplia no imaginário coletivo, resultado de um acontecimento que ganha campo no imaginário. Só depois de décadas ela adquire esse caráter. O que podemos fazer hoje é estimular a conversa, a troca de ideias e usar os meios de comunicação para que esses fatos sejam contados”, sugere.

Nesse ponto, ele ressalta a importância da fantasia no cotidiano. “Querendo ou não, todos nós fantasiamos, imaginamos lugares, pessoas, pensamos em nós mesmos como super-heróis. Faz parte da vida e da nossa personalidade. A gente vive de fantasia, estamos imbuídos desse sentimento interno de fantasiar coisas, de pensar coisas interessantes, de querer uma vida melhor, de buscar alegria, felicidade. Tudo isso também está no campo da fantasia e é daí que as lendas nascem”, explica o professor.

Em meio à modernidade e à apressada vida urbana, as lendas de Teresina continuam sendo parte essencial do patrimônio cultural da cidade. Elas não apenas alimentam o imaginário popular, como também convidam a refletir sobre questões profundas da sociedade. “Fantasia também é história e, se a gente não conta, ela não se registra. A memória se perde. Professores, jornalistas, artistas, gestores públicos são responsáveis e têm um papel em manter essas narrativas vivas”, conclui Raimundo.

Mais do que lembranças de um passado distante, as lendas de Teresina seguem pulsando como espelhos de suas transformações sociais, e cabe às novas gerações decidir se elas continuarão a ecoar nas calçadas, escolas e rodas de conversa da nossa capital.

Rebeca Negreiros, especial para o Portal O Dia, com edição de Isabela Lopes.


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