No dia 3 de agosto, é comemorado o Dia do Capoeirista, data que celebra não apenas um esporte, mas uma manifestação cultural enraizada na história do Brasil. Reconhecida como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade pela Unesco desde 2014, a capoeira também ganhou, em fevereiro de 2025, o título de Patrimônio Cultural Imaterial do Piauí, reafirmando seu papel educativo, social e inclusivo no estado.
Mestre Bobby, como é conhecido Robson Carlos da Silva, professor da Universidade Estadual do Piauí (UESPI), é uma das maiores referências da capoeira no estado. Com quase 46 anos dedicados à prática, ele conta que começou em 1979 e acompanhou as transformações que a capoeira enfrentou ao longo das décadas.
“Passamos por um processo muito difícil de reconhecimento e ausência de conhecimento do que era a capoeira”, relembra. Segundo ele, durante os anos 1960 e início dos anos 1970, a capoeira ainda carregava estigmas ligados à escravidão e à marginalidade, mas começou a ser ressignificada como prática esportiva e cultural. A oficialização da capoeira como esporte aconteceu em 1972, quando foi regulamentada pela Confederação Brasileira de Pugilismo.
No Piauí, a prática já existia, mas ganhou mais visibilidade a partir da década de 1980. “Começa o boom da capoeira no Estado, quando ela adentra as escolas públicas, aos finais de semana, ocupando os espaços e, posteriormente, passa a ser apresentada como escolinha nas primeiras escolas particulares de Teresina. O aluno pagava a mensalidade e tinha direito a escolher uma modalidade esportiva para praticar e, dentre elas, estava a capoeira.
A expansão continuou ao longo dos anos 1990, quando a capoeira passou a ocupar espaços como universidades e chegou a outros continentes. Nos anos 2000, a capoeira se estabiliza, ganhando força internacional. Mesmo com a impressão de que sua presença nas ruas diminuiu, o mestre afirma que a capoeira continua forte. “Hoje ela está nas academias, nas praças, centros comunitários, escolas e projetos sociais nas periferias. Isso mostra sua democratização, mesmo que nem sempre receba a atenção merecida”, comenta.
Mestre Bobby destaca que a capoeira tem um papel transformador e é ferramenta poderosa de inclusão. “Sempre houve mulheres na capoeira, mas eram silenciadas. Diziam que era coisa de homem ou de malandro. Hoje, temos uma participação ativa das mulheres, das crianças, dos idosos e até de pessoas com deficiência. Temos um mestre cadeirante, e isso é resultado direto dessa abertura e valorização da diversidade”, conta.
Para ele, o reconhecimento recente da capoeira como patrimônio no Piauí é um avanço, mas os desafios persistem, tanto internos quanto externos. “Temos o que chamo de ‘colonialismo interno’. As pessoas acham que o que vem de fora é melhor. Valorizam mais um profissional do Rio de Janeiro do que um mestre daqui. Isso precisa mudar”. Já os obstáculos externos envolvem a falta de investimento público. “Mesmo com o reconhecimento oficial, não temos políticas públicas voltadas à capoeira. Há poucos editais e incentivos para projetos”, lamenta.
A capoeira, segundo ele, é uma poderosa aliada na formação dos jovens. E, além da parte física, a atividade carrega um conteúdo educativo e de conscientização. “No nosso grupo, temos duas meninas evangélicas, cuja avó faz questão de levá-las para as aulas. Isso mostra que a capoeira rompe barreiras religiosas e sociais. Não é só jogar. A gente conversa, fala sobre a história negra, indígena, sobre a mulher, as questões sociais. Os jovens se identificam muito com o professor. O mestre precisa ter boa intenção para inspirar os alunos”, finaliza Mestre Bobby.
Capoeira na periferia de Teresina
Fábio da Silva Milanêz, mais conhecido como Mestre Camarão tem 42 anos, sendo 27 dedicados a essa arte que combina luta, dança, musicalidade e resistência. Sua relação com a capoeira começou ainda na infância, quando, nos anos 1990, se encantou com um toque de berimbau que ouviu no CSU do Parque Piauí, em Teresina.
Naquela época, ainda era comum ouvir carros de som circulando pelos bairros anunciando eventos de batizado e troca de cordas. Camarão ia assistir, sempre curioso, mas a timidez impedia que se aproximasse mais da prática. Foi somente em março de 1998 que teve o primeiro contato direto com a capoeira, por meio do professor de Educação Física Leonardo, o Professor Baú, discípulo de Mestre Bobby, que introduziu a disciplina na escola onde estudava. “Me inscrevi na turma, e sigo até hoje”, conta.
Com a saída de Baú, a turma foi assumida por outros mestres até que, em 1999, Mestre Vagalume, discípulo de Bobby, passou a orientar os treinos. Foi ele quem incentivou Camarão a dar os primeiros passos como educador dentro da capoeira. “Desde cedo, ele me colocava para ajudá-lo nas aulas. Sempre dizia que via em mim um dom para o ensino”, relembra.
Em 2003, Camarão recebeu a graduação de corda azul, que permite conduzir turmas e formar novos praticantes. Por conta da rotina intensa de estudos e trabalho, adiou a atuação como professor. Mas em 2022, no período pós-pandemia, finalmente deu início ao próprio projeto. O local escolhido foi a Unidade Escolar Florisa Silva, na região do Grande Promorar, uma das áreas mais populosas e vulneráveis de Teresina.
Sem apoio financeiro do Estado, o projeto segue de forma voluntária, com o engajamento dos próprios capoeiristas e o apoio das famílias dos alunos. “Desenvolvemos aulas práticas com foco em disciplina, confiança, autoestima e habilidades motoras e cognitivas”, explica. A formação vai além dos movimentos da roda, envolve também musicalidade, confecção artesanal de instrumentos, canto, composição de músicas e poesia.
Além disso, o projeto promove a valorização de manifestações afro-brasileiras, como o Maculelê e o Samba de Roda. Para os que desejam competir, há ainda preparação para a capoeira esportiva. “Em 2024, realizamos o Campeonato Interno Mestre Bobby. E, em junho de 2025, organizamos o Circuito Teresinense de Capoeira, aberto a todas as escolas do Estado”, destaca.
Um dos momentos mais simbólicos da jornada dos alunos é o ritual de progressão de cordas, que acontece anualmente. Neste ano, o evento está marcado para os dias 24 e 25 de outubro, com a realização da terceira edição do Circuito de Prática Escolar com Capoeira e Festival de Música. “É um momento especial, com apresentações culturais onde os alunos demonstram tudo o que aprenderam ao longo do ano. Me sinto realizado por saber que contribuo para manter viva essa arte-cultura afro-brasileira, retribuindo um pouco do que recebi dos meus mestres. Vejo nas crianças e adolescentes do projeto que a semente foi plantada e está crescendo bem", complementa.
O esporte transformando vidas na zona Sul de Teresina
E é na Unidade Escolar Florisa Silva, no bairro Promorar, zona Sul de Teresina, que acontece um projeto de capoeira com mais de 60 alunos. Entre eles estão Ana Vitória Ferreira Lima, de 15 anos, e Thyalison da Silva Pereira, de 14, que encontraram na arte da capoeira muito mais do que um simples esporte, um caminho de crescimento, pertencimento e transformação pessoal.
Ana Vitória teve seu primeiro contato com a capoeira por meio de amigos. A princípio, a timidez falou mais alto. “Eu não fazia porque tinha vergonha, pois tinha muita gente na roda, mas meus amigos me convenceram, fui e me apaixonei. O primeiro dia foi diferente, pois eu não estava acostumada a fazer exercício físico, então a gente se perde um pouco, mas foi muito bom”, relembra.
Hoje, o que mais encanta Vitória são as relações que ela construiu ao longo desse tempo. “O que mais gosto são das pessoas que fazem parte do grupo, pois não tem julgamentos, todos se ajudam, e o professor é muito dedicado no que faz”, destaca.
Para ela, a capoeira vai além da luta e da dança, é um espaço de cultura e aprendizado. “A capoeira é uma dança disfarçada de luta, mas tem muito mais coisa. Além disso, treinamos o maculelê, temos aula de musicalidade, aprendemos a fazer os instrumentos, a cantar e tocar. As músicas são diversificadas e falam do amor pela capoeira, outras contam a história da capoeira, e sempre me arrepio quando cantamos. Temos aulas dedicadas aos instrumentos. Os ensinamentos que a capoeira traz são levados para a vida: temos mais disciplina, disposição para estudar”, comenta.
Thyalison também começou na capoeira timidamente. “Um dia eu passei pela rua da escola, Florisa Silva, aí eu vi essa roda e já me apaixonei. Entrei, fiquei olhando, perguntei para o professor se eu poderia treinar e ele deixou. Nos outros dias, fui só para observar, mas depois comecei a treinar mesmo, e estou até hoje aqui”, relata.
Ele conta que gosta de tudo um pouco, desde as rodas de capoeira até o maculelê e as trocas de corda. “Com a capoeira, aprendi que tem que ter respeito, responsabilidade, ética. Também tem que treinar muito para aprender os movimentos, que não é fácil”, conclui.
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