Há 10 anos, o Brasil registrava a epidemia do vírus da Zika, uma das maiores urgências de saúde pública da história brasileira. Em meados de 2015 e 2016, centenas de bebês nasceram com uma malformação no cérebro, causando a microcefalia. Esse espectro de condições é chamado de Síndrome Congênita do Vírus Zika, sendo a transmissão do patógeno ocasionada, principalmente, pelo mosquito Aedes aegypti.
A doença mudou o modo de atuação da saúde materna e infantil do País e, apesar da situação não ser mais considerada um surto pelo Ministério da Saúde, os efeitos continuam sendo sentidos, e os casos da infecção seguem sendo acompanhados pelos órgãos de saúde.
A vida da dona de casa Cristina Santos e de sua família mudou completamente em 2015, quando ela deu à luz ao pequeno Guilherme. Ainda no sétimo mês de gestação, ela descobriu que o bebê apresentava uma má formação no cérebro, no qual seu perímetro cefálico já não conseguia acompanhar o crescimento considerado adequado para a idade gestacional. Orientada pelo médico, seguiu com a gestação até o nono mês, culminando com uma cesariana.
Após o nascimento, com a realização de diversos exames, os médicos confirmaram o diagnóstico de microcefalia, devido à presença de manifestações como calcificações intracranianas, ventriculomegalia, índice de líquido amniótico, entre outras
Com cinco dias de vida, os médicos deram o que seria a vida dele: precisaria de acompanhamento e fisioterapia para o resto da vida. O diagnóstico, para a mãe, é como se fosse um luto daquele filho que idealizamos ter, mas a gente supera esse luto e ele virou força
Natural de José de Freitas (distante 58 km de Teresina), Cristina e o filho chegavam a fazer até quatro viagens por semana à Capital em busca de tratamento. A rotina médica, além de cansativa, também afastava mãe e filho da família. Além de Guilherme, Cristina é casada e tem outro filho. Para ficar mais próxima de casa e dos familiares, a família optou por fazer as fisioterapias e os demais acompanhamentos no próprio município, através da Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE).
“Hoje, ele é uma criança que está bem, dentro do possível. Ele sorri, porém, convulsiona todos os dias. Tenho o cuidado de modificar a postura dele para evitar deformidades. O Guilherme já tem algumas deformidades, mas usamos as órteses para retardar. A criança que teve menos assistência ou a mãe não teve mais condições de dar continuidade ao tratamento, a criança está deformada.”
Cristina era autônoma e trabalhava com vendas, mas, após o nascimento de Guilherme e a rotina intensa de cuidados com o filho, precisou abrir mão da vida profissional. Hoje, apenas o marido sustenta a família. “Hoje, somos mulheres cansadas e sobrecarregadas. Consultas, exames, retorno, o cuidado com a criança, com outros filhos. Nós tivemos que nos diminuir para que eles pudessem existir. Tivemos que nos anular como mulher e profissional, abdicar de trabalho e estudo para cuidar deles, para que, hoje, eles tenham quase 10 anos. Eu tive a sorte de ser uma minoria entre as mulheres que o marido não abandonou a criança e ela se tornou mãe solo”, disse.
Guilherme recebe um benefício no valor de um salário mínimo, que cobre parte dos custos com plano de saúde e itens essenciais, como fraldas. A família ainda depende do fornecimento de medicações pela Secretaria de Saúde, mas nem sempre a entrega é completa. “Há falhas, pois, às vezes, só disponibilizam metade das medicações.”
O filho mais velho ajuda no cuidado com Guilherme, seja no banho ou para colocá-lo na cadeira de rodas. As tarefas são revezadas com o pai. A união familiar é o principal pilar de sustentação, mas o peso da rotina é constante. “O cansaço é muito grande. São crianças pesadas. Tudo que um ser humano faz, nós [mães] fazemos por dois. É uma vigilância de 24 horas”, disse.
A dura realidade das famílias de crianças com microcefalia
Atualmente, a realidade das famílias de crianças com microcefalia por zika vírus é marcada por abandono e falta de estrutura. Poucos municípios possuem centros de reabilitação ou unidades da APAE, o que torna o acesso ao tratamento extremamente limitado. A maioria dessas crianças, agora maiores e com mobilidade reduzida, está em casa, parada. Muitas precisam de cadeiras de rodas, mas enfrentam cidades sem acessibilidade e sem transporte oferecido pelas prefeituras. As famílias, sem condições financeiras de se locomover, acabam isoladas e sobrecarregadas.
“Hoje, o que se tem de realidade é que a maioria das crianças estão em casa e paradas”, relata Cristina Santos. Diante do abandono dos serviços públicos e da ausência de profissionais de saúde, essas famílias precisaram aprender a cuidar sozinhas. Mães tornaram-se fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais, fonoaudiólogas, enfermeiras e defensoras dos direitos dos filhos. Aprenderam a alongar membros, a usar talas extensoras, a administrar medicações e a enfrentar o cotidiano sem apoio, especialmente após a pandemia.
As dificuldades financeiras agravam ainda mais o cenário. Quem possui plano de saúde consegue parte da assistência, mas a maioria depende da farmácia do Estado, que frequentemente falha na entrega. Materiais como sondas e mangueiras usadas para alimentação por gastrostomia precisam ser reutilizados por mães que não têm alternativa.
O custo de manter uma criança com microcefalia é alto. Muitas têm epilepsia de difícil controle e usam até quatro medicações diárias, algumas custando até R$ 700. A alimentação especial, com suplementos infantis, pode ultrapassar R$ 400 por mês. Sem suporte público adequado, essas famílias enfrentam sozinhas uma batalha diária, invisíveis aos olhos do Estado.
Mães se unem pelos direitos das crianças com microcefalia da zika
Cristina também participa da UniZika, uma Organização Nacional que luta por políticas públicas para famílias afetadas pela síndrome. Uma vitória importante foi a sanção da Lei nº 15.156/2025, que garante indenização por dano moral e pensão especial para pessoas com deficiência permanente decorrente da síndrome congênita associada ao Zika vírus. A legislação prevê o pagamento de R$ 50 mil por dano moral, além de um benefício mensal de até R$ 8.157,41, equivalente ao teto do INSS.
Apesar da sanção, a medida ainda depende de regulamentação para ser implementada. “A lei foi sancionada, mas precisa ser regulamentada, então ainda não é uma realidade em nossas vidas. É uma esperança de dias mais leves para as nossas crianças, pois poderemos dar mais qualidade de vida para eles”, destaca Cristina.
Ela alerta, porém, que nem todas as famílias conseguirão ter acesso ao benefício, já que muitos diagnósticos não apontaram a relação direta com o vírus da Zika, mesmo com os sintomas claros da síndrome. “Infelizmente, tivemos algumas falhas no diagnóstico, e nem todas conseguiram comprovar essa relação. Apesar das crianças terem as sequelas e feito todos os exames, isso não foi colocado no laudo”, comenta.
Segundo Cristina, no Piauí, dos 114 casos de microcefalia notificados durante o surto, apenas 35 tiveram confirmação como Síndrome Congênita do Vírus Zika. O número revela a dimensão da luta das famílias que, mesmo passados 10 anos, continuam enfrentando obstáculos diários, tanto no cuidado direto com os filhos quanto no reconhecimento de seus direitos.
Do surto à reabilitação: como o Piauí estruturou o atendimento a crianças com microcefalia por zika vírus
Em 2015, o Brasil se deparou com uma condição até então incomum: o nascimento de um número crescente de bebês com microcefalia — anomalia caracterizada por um perímetro cefálico menor que o padrão. A situação foi especialmente crítica no Nordeste, com destaque para os estados de Pernambuco, Paraíba e Piauí. A partir de estudos e investigações clínicas, identificou-se que a microcefalia estava relacionada à infecção pelo zika vírus, transmitido pelo mosquito Aedes aegypti durante a gestação.
A proporção de casos cresceu rapidamente, ultrapassando em muito o percentual considerado raro para esse tipo de malformação. Os primeiros sinais da epidemia vieram de Campina Grande, na Paraíba, com a correlação entre o vírus e as alterações cerebrais em recém-nascidos. “Esse caso serviu como um despertar para todos os lugares que tinham crianças nascendo com essas condições”, lembra o neurocirurgião pediátrico e funcional do Hospital Infantil Lucídio Portella (HILP), Francisco Alencar, à época superintendente executivo do Centro Integrado de Reabilitação (Ceir).
No Piauí, o impacto foi imediato e exigiu uma resposta rápida. O Estado se destacou nacionalmente por ser um dos primeiros a estruturar um plano de atendimento a essas crianças. “Diante dessa epidemia de microcefalia por zika vírus, resultando no nascimento de crianças com a cabeça pequena, o Piauí passou a agir. O Estado foi um dos primeiros do Brasil a criar um projeto estruturado para atender essas crianças, de modo que, após o nascimento, elas eram encaminhadas para a estimulação precoce”, conta Alencar.
O protocolo envolvia triagem inicial pela Maternidade Dona Evangelina Rosa (MDER), com encaminhamento imediato para o Ceir. Lá, as crianças passavam por exames de imagem, como tomografia, e, com a confirmação do diagnóstico, eram incluídas no programa de estimulação precoce. “O Piauí foi o estado que melhor e mais rapidamente se organizou. Nessa época, todas as crianças que nasceram com microcefalia entraram no programa. De 78 crianças que faziam parte do projeto, 53 tinham confirmação sorológica de microcefalia por zika vírus”, destaca o médico.
As manifestações clínicas dessas crianças iam além do perímetro cefálico reduzido. Elas apresentavam alterações visuais, malformações ortopédicas, deformidades nos quadris e nos pés, além de calcificações no cérebro. Muitas evoluíam para rigidez muscular grave ainda nos primeiros meses de vida, consequência da espasticidade que afeta o tônus muscular.
Esse cenário exigiu adaptações terapêuticas imediatas. “Com um ano, tivemos que instituir tratamentos que somente seriam a partir de dois anos, como a aplicação de botox precocemente, bem como a realização da Rizotomia Dorsal Seletiva (RDS), um procedimento usado para tratar a espasticidade. Além disso, elas foram incluídas no programa de reabilitação das crianças com paralisia cerebral. Assim, o Hospital Infantil virou outro núcleo dos procedimentos neurocirúrgicos e ortopédicos dessas crianças”, explica Alencar.
No total, 67 rizotomias foram realizadas em crianças com a Síndrome Congênita do Vírus Zika no Piauí, além de várias cirurgias ortopédicas no Hospital Infantil Lucídio Portella, que passou a ser referência também nesses atendimentos especializados.
Sobrevida e suporte que as crianças necessitam
As crianças afetadas pela microcefalia por zika vírus seguem necessitando de cuidados contínuos, especialmente em neurocirurgia e ortopedia. Segundo Francisco Alencar, a prioridade no atendimento se deveu à gravidade e ao número expressivo de casos. No entanto, ainda há uma fila de espera para cirurgias como a de correção de luxação do quadril, comum nessas crianças.
Além da complexidade clínica, há também uma questão de sobrevida.
A sobrevida de uma criança cadeirante com paralisia cerebral, independente da causa, em relação a uma criança que caminha, é de 20% a 30% a menos. A criança que não caminha tem uma perda de vida de aproximadamente 20 anos, devido às questões respiratórias, à escoliose, entre outras
A principal necessidade atual dessas crianças é a manutenção contínua da reabilitação. Contudo, os desafios estruturais do sistema de saúde persistem. “Os centros de alta complexidade, em geral, têm um limite de idade, então essas crianças estão meio sem ter o acesso desejado, pois no Piauí são escassos os centros de média complexidade. Sem essa questão estrutural, essas crianças voltaram para suas casas, mas continuam precisando de suporte e apoio do hospital”, finaliza Alencar.
O surto de microcefalia por zika vírus trouxe uma nova realidade à saúde pública brasileira e revelou a importância de respostas rápidas, protocolos bem estruturados e, sobretudo, a continuidade no cuidado às crianças afetadas. O Piauí, mesmo com limitações, foi referência nessa trajetória, e o desafio agora é garantir que essas crianças, que cresceram com tantas necessidades, não sejam esquecidas pelo sistema.
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