As fundações dos EUA repousam sobre pilares ideológicos do Iluminismo, baseados nos quais os “Pais da Pátria” desmantelaram a justificação do absolutismo monárquico britânico e forjaram uma nova ordem política, voltada para a luta contra o despotismo.
O Iluminismo é um movimento filosófico e cultural europeu originado no século XVIII, que enfatiza a razão, o individualismo e o ceticismo em relação à autoridade tradicional (em especial, a monarquia absoluta e a Igreja). Seus defensores acreditam que a razão humana é capaz de resolver problemas sociais, políticos e econômicos, e que o conhecimento deve ser baseado na observação e na lógica, e não na fé cega ou na tradição. Os iluministas afirmam Direitos Naturais e Inalienáveis, ideia popularizada por John Locke, segundo a qual todo indivíduo nasce com direitos inerentes (vida, liberdade e propriedade/busca da felicidade), os quais precedem a formação do Estado e não podem ser retirados por nenhum governo; e asseveram que a legitimidade do governo reside no consentimento dos governados, conceito conhecido por “Contrato Social”.
Jean-Jacques Rousseau argumentava que o poder emana do povo, e não de um direito divino (jus divinum), como defendiam os reis e imperadores, apoiados na igreja. Os iluministas têm a convicção de que o poder estatal deve ser rigidamente limitado, através da Separação de Poderes, princípio articulado por Montesquieu, o qual assevera que o poder deve ser dividido entre diferentes ramos (Executivo, Legislativo, Judiciário) para que cada um funcione como freio e contrapeso ao outro, pois o exercício do poder sem tal controle leva inevitavelmente à tirania.
Sob a liderança de George Washington e a influência de figuras-chave como Thomas Jefferson, Benjamin Franklin e James Madison, o país adotou os princípios do Republicanismo Cívico e do Liberalismo Clássico. O Republicanismo Cívico se basea na crença da Virtude Cívica, segundo a qual os cidadãos devem atuar em prol do bem comum da República, e não apenas no interesse de determinado grupo ou facção; crendo ainda na prática da Participação Ativa, que requer o envolvimento contínuo do cidadão na vida política e na defesa da liberdade.
O Liberalismo Clássico, por seu turno, foi adotado principalmente com o seu viés político, com foco na proteção do indivíduo contra a coerção do Estado, para eliminar os resquícios da tirania monárquica britânica, e não tanto com o viés econômico, que se base no livre comércio (além da defesa da propriedade), uma vez que líderes como Alexander Hamilton e George Washington eram simpáticos ao protecionismo, sob o argumento de que a autonomia política é subordinada à independência econômica e que o protecionismo seria essencial ao desenvolvimento da indústria incipiente, que proporcionaria a independência econômica pretendida e a segurança nacional.
A construção da nova ordem política se deu com a Declaração da Independência, em 1776, que representou o momento da liberação do julgo britânico; a promulgação da Constituição de 1787, representando a fundação da nova ordem; e o posterior Bill of Rights, as dez primeiras emendas consagradas às liberdades individuais (liberdade de expressão, religião, imprensa, etc.), incorporando os princípios do individualismo e dos direitos naturais de forma explícita na lei fundamental.
A Declaração de Independência dos EUA, de 1776, inspirada em John Locke, consagrou os direitos inalienáveis à "vida, liberdade e busca da felicidade", enquanto a Constituição de 1787 e o posterior Bill of Rights estabeleceram um complexo sistema de freios e contrapesos para proteger os direitos individuais e limitar o poder estatal, evitando a tirania com o emprego da separação de poderes (em Executivo, Legislativo e Judiciário) e do sistema de freios e contrapesos (checks and balances), garantindo que nenhum dos Poderes se tornasse dominante. A ideia de "governo limitado" era voltada, primariamente, para a proteção do indivíduo contra o poder arbitrário do Estado, em consonância com os princípios do liberalismo político, como dito, em preponderância sobre os ditames do liberalismo econômico.
O espírito do Iluminismo floresceu nos EUA no terreno fértil da fé cristã, sob a convicção de que a liberdade é um dom cedido por Deus, sendo, portanto, anterior ao Estado, como ressalta Aderson Santos, que aponta o cristianismo como alicerce ético sobre o qual se ergueram as instituições norte-americanas, apoiando-se para tanto nos Pilgrims (Peregrinos), que se constituíram no mais importante e simbólico grupo de colonos da fundação da sociedade americana, responsáveis pela elaboração do denominado Mayflower Compact (pacto de Mayflower), assinado ainda a bordo do navio que os levava para as terras americanas, diante de tensões que ameaçavam dividi-los, fazendo-os reconhecer a necessidade de instituir uma autoridade civil e de submeterem-se ao governo, aos oficiais eleitos e às leis que eles próprios criariam. Um documento inspirador dos princípios constitucionais dos EUA, visto como um dos primeiros exemplos da tradição democrática americana, por estabelecer o autogoverno e a dependência do consentimento dos próprios colonos para legitimá-lo.
Os Pilgrims trouxeram consigo a profunda convicção de que estavam construindo uma "nova Canaã", dando origem à visão de que a América do Norte passaria a abrigar um povo eleito por Deus. A fé, a religião e a justiça caminhariam de mãos dadas, onde a busca pela salvação das almas era também uma pauta política. Essa dimensão religiosa demonstra que a liberdade, para os norte-americanos, é um direito inerente e transcendente, alinhando-se ao argumento de que o alicerce ético das instituições americanas foi forjado na fé.
No entanto, o cenário atual revela a erosão de tais fundações, observando-se a adoção pela atual administração de práticas semelhantes às de regimes autoritários, conforme definidos pela ciência política, os quais o iluminismo condena, o que importa no afastamento dos EUA da sua arquitetura política original.
A atual Administração norte-americana é adepta da Doutrina da Unidade do Executivo (Unitary Executive Theory – UET), segundo a qual todo o poder executivo do governo federal residiria, de forma única e indivisível, no Presidente dos Estados Unidos.
A Doutrina da Unidade do Executivo é uma controvertida teoria constitucional norte-americana, objeto de debates jurídicos e políticos contemporâneos. A ideia de que o Presidente possuiria autoridade executiva singular tem raízes históricas nos primeiros anos da República, com figuras como Alexander Hamilton e George Washington defendendo um Executivo forte. No entanto, como teoria legal moderna e articulada, a Doutrina se popularizou no final século XX, impulsionada por juristas conservadores e libertários nos anos 70 e 80, para desafiar a estrutura administrativa do pós-guerra, em uma reação contra a proliferação de agências independentes criadas pelo Congresso (o chamado Administrative State ou Estado Administrativo), que limitavam o controle presidencial, havendo a teoria ganhado força nas Administrações Republicanas, especialmente a partir da administração de George W. Bush e, mais recentemente, na administração de Donald Trump, sendo utilizada para justificar a expansão do poder presidencial e o controle sobre o Executivo.
Defendida por juristas como Robert Bork, que ajudou a dar forma às premissas da teoria; Antonín Scalia e Clarence Thomas, ex-ministros da Suprema Corte que se tornaram defensores proeminentes da versão forte da UET em seus votos e opiniões jurídicas; e William Barr: ex-Procurador-Geral, que defendeu publicamente a teoria, a qual se baseia em uma interpretação literal e maximalista de duas cláusulas específicas do Artigo II da Constituição dos EUA:
a) a Cláusula de Investidura (Artigo II, Seção 1), que determina que "O Poder Executivo será investido em um Presidente dos Estados Unidos da América.", com base na qual os defensores da UET afirmam que o poder executivo é unitário e não pode ser dividido ou compartilhado, sendo ilegítima a criação pelo Congresso de agências que sejam imunes ao controle hierárquico direto do Presidente; e
b) a Cláusula de Cuidado (Take Care Clause - Artigo II, Seção 3) a qual estabelece que o Presidente "zelará para que as Leis sejam fielmente executadas.", o que, na interpretação dos defensores da Doutrina, importa em que, para que o Presidente possa cumprir seu dever de "executar fielmente" as leis, ele deve ter o poder de supervisionar, dirigir e, crucialmente, remover qualquer oficial do Executivo que ele julgue estar falhando nessa tarefa. A teoria vê esta cláusula como um empoderamento presidencial, exigindo uma cadeia de comando unificada.
A principal implicação prática da Doutrina é que o Presidente deve ter o poder irrestrito de Direcionar e de Remover qualquer funcionário do Executivo (incluindo agências reguladoras), sem necessidade de aprovação do Congresso e sem restrições de "causa justa", excluídos os ocupantes de cargos cuja função seja puramente judicial ou legislativa.
A investidura do Presidente, com arrimo na UET, no poder irrestrito de remover qualquer funcionário da Administração é a força motriz para a promoção do princípio da “lealdade ao líder”, em detrimento da “lealdade à lei”. Os sistemas democráticos são baseados na soberania da lei (Rule of Law), e não na soberania de um indivíduo, típica de regimes autoritários. Em regimes democráticos, o Civil Service (serviço público) é orientado para funcionar como uma burocracia técnica e politicamente neutra, cuja função é executar as leis de forma consistente, independentemente de quem ocupe o Poder. Em tais regimes, a lealdade do funcionário deve ser à Constituição e às leis, garantindo a continuidade e a impessoalidade da Administração.
Mas o Presidente Trump é contra as ideias que limitam o poder do Executivo e vai além dos limites da UET. Na sua concepção hiper presidencialista do Poder, a atual Administração norte-americana entende que o sufrágio universal autoriza tudo, durante o mandato, e que juízes não eleitos não deveriam ousar se colocar contra as decisões do presidente eleito, desconsiderando os freios impostos pelo Judiciário.
O presidente Trump ignora ordens judiciais, violando o Estado de Direito; fere o pacto federativo ao mandar forças nacionais para reprimir dissidentes políticos em Estados de maioria Democrata, desrespeitando a autonomia estadual; despreza garantias dos funcionários públicos, promovendo demissões em massa por e-mail, politizando desta forma a máquina estatal e desmantelando a estabilidade administrativa, além de minar a capacidade técnica e a independência da burocracia; e utiliza-se da sua influência partidária para ameaçar os deputados e senadores que compõe a maioria republicana de dificultar as suas candidaturas à reeleição, se não seguirem a orientação do Executivo, nas votações, comprometendo o princípio da separação de Poderes.
O Federalismo é um princípio fundante dos EUA que garante a distribuição de poder entre o governo central e os governos estaduais, estabelecendo uma "dupla soberania". Essa estrutura visa proteger a liberdade, impedindo a concentração total de poder no governo federal (manifestação do princípio do governo limitado); e permitir a pluralidade, dando aos estados autonomia para gerir suas políticas internas, como segurança e educação.
Todavia, a atual Administração pratica o Federalismo Seletivo, que consiste na prática de defender a autonomia estadual somente quando ela está alinhada à agenda do Executivo Federal e de suprimir essa autonomia quando ela se opõe a tal agenda, o que representa uma distorção que fere o pacto federativo norte-americano.
Por seu turno, a ameaça de dificultar a reeleição de seus membros transforma o Congresso em um "Poder homologador" dos atos do Executivo, esvaziando a função constitucional de um Poder formalmente independente, o que representa uma falha sistêmica do checks and balances, pois o Legislativo abdica de sua função fiscalizadora em troca de sobrevivência política de seus membros, acelerando a marcha do autoritarismo.
Neste cenário, o congressista vive um dilema, pois ele depende da aprovação do líder para ser reeleito em sua circunscrição (especialmente em primárias). A oposição pública ao Executivo Federal pode resultar na retirada do apoio político do líder, na destinação de fundos para um rival nas primárias ou, pior, em um endosso a um oponente mais leal. O congressista se ver forçado a escolher entre sua obrigação constitucional de fiscalizar o Executivo (Lealdade à Lei) e a submissão ao chefe do Executivo (Lealdade ao Líder), para assegurar a sua sobrevivência política, garantindo a sua reeleição.
A ameaça de dificultar a reeleição dos congressistas correligionários, se adotada sistemática e eficazmente pelo chefe do Executivo, representa o colapso dos Checks and Balances, constituindo-se no poder informal capaz de anular a ação do Legislativo, convertendo a sua atuação em mera formalidade jurídica.
Em seu livro Life, Low & Liberty, o ex-ministro da Suprema Corte, Anthony Kennedy, em uma clara alusão à atual Administração, afirma que alguns líderes políticos buscam se colocar acima da lei, direcionam promotores contra seus adversários e vêm os juízes não como árbitros imparciais, mas como "leões sob o trono", adotando a visão de reis da época de Francis Bacon.
Em um artigo recente intitulado "Donald Trump está Elevando os Riscos da Permanência no Poder" (Donald Trump is raising the stakes for holding power) a revista The Economist destaca que o Presidente está usando seu cargo para punir adversários de maneiras inéditas, como, por exemplo, quando ordenou abertamente, via redes sociais, que a Procuradora-Geral Pam Bondi processasse seus inimigos, como James Comey, ex-diretor do FBI. Em outro caso citado na reportagem, um promotor federal nomeado por Trump (Erik Siebert) renunciou após desagradar o Presidente ao concluir que não havia provas suficientes para um caso de fraude contra a Procuradora-Geral de Nova York, Letitia James. O mesmo artigo ressalta que o Presidente também utiliza o poder para influenciar os processos democráticos, buscando impor novas restrições ao voto, antes das eleições de meio de mandato; e que o mesmo determinou, ainda, uma ofensiva ampla contra organizações sem fins lucrativos que apoiam a esquerda.
Um outro artigo da mesma revista, intitulado "A realidade aterrorizante de ser um juiz na América" (The terrifying reality of being a judge in America) a publicação destaca o fato de um juiz federal nomeado por Trump ter sido acusado de “insurreição” pelo vice-chefe de gabinete da Casa Branca, Stephen Miller, por ter-se oposto às ordens presidenciais de enviar tropas para Portland, Oregon.
Ao lado de tais fenômenos, observa-se também a instrumentalização das instituições, prática alinhada à característica autoritária do esvaziamento institucional, em que as instituições são enfraquecidas até perderem sua autonomia, tornando-se dependentes do grupo no poder.
Multiplicam-se nos EUA os ataques contra a independência do seu banco central, o Federal Reserve (FED), por meio de manifestações públicas que buscavam influenciar as decisões de política monetária, chegando o Presidente Trump a questionar abertamente se Jerome Powell, Presidente do Conselho de Governadores do FED, seria um "inimigo" dos EUA e ventilando publicamente a possibilidade de demiti-lo ou rebaixá-lo, algo nunca registrado na história moderna do FED.
A independência do banco central ter por objetivo priorizar a política monetária técnica e de longo prazo, voltada para o combate à inflação e para a estabilidade, em relação à agenda política de curto prazo, com fins eleitorais, preservando a responsabilidade técnica em detrimento da discricionariedade política.
Muitas vezes a agenda político-eleitoral entre em choque com a política monetária do banco central, por pretender estimular o crescimento econômico imediato e o emprego a curto prazo, através da redução dos juros, do aumento do crédito e da expansão monetária (injeção de dinheiro na economia), geralmente nos 12-18 meses que antecedem uma eleição, para obter apoio popular, o que sempre resulta em alta da inflação no futuro (depois das eleições), exigindo um alto preço em forma de recessão e desemprego para a retomada do controle.
Para ser eficaz, a política monetária, confiada ao FED, exige um horizonte de longo prazo e credibilidade, pois a eficácia da política monetária depende da crença do mercado de que o banco central cumprirá sua meta de inflação. Se o público e o mercado acreditarem que o Banco Central está sujeito a pressões políticas, eles perdem a confiança de que o banco central agirá com prudência, independentemente do ciclo político, aumentando a expectativa de inflação futura, o que resulta no aumento das taxas de juros, tornando a inflação uma profecia autorrealizável.
A política monetária de longo prazo, garantida pela independência técnica do banco central, é a proteção institucional da saúde econômica da nação contra a tentação populista movida pelos ciclos eleitorais. A submissão da técnica à política resulta inevitavelmente em instabilidade inflacionária e comprometimento do emprego.
Outrossim, a tentativa de controle da memória e da cultura, através da interferência em universidades públicas e privadas, por meio da ameaça de corte de verbas, e a censura do acervo e das exposições de bibliotecas e museus é um traço distintivo de governos autoritários, comparável a práticas observadas na Rússia e na China. O governo Trump tem visado instituições que considera ideologicamente alinhadas com visões progressistas ou de minorias, com o objetivo de controlar essas instituições e tentar adequá-las à visão do Presidente americano e de sua equipe, em conformidade com a Doutrina da Unidade do Executivo (Unitary Executive Theory – UET), mencionada acima.
Um decreto de Trump ordena uma auditoria das exposições de oito museus, com prazo para corrigir ou substituir conteúdos contrários à visão da administração e livros que incomodam, como os de Toni Morrison (Prêmio Nobel de Literatura, que escreveu sobre o trauma da escravidão), já foram retirados das prateleiras em muitas bibliotecas, especialmente nos estados conservadores do sul. A Administração impõe a abordagem de temas como escravidão, imigração e direitos LGBT de forma a buscar uma narrativa que apague tudo o que perturba tal visão unívoca. Tais condutas correspondem à censura e ao controle da narrativa, um dos mecanismos de controle social de regimes autoritários.
A justificativa é a defesa de uma "grandeza americana" e a celebração dos 250 anos da Declaração de Independência, em 2026, mas essa abordagem contrasta diretamente com o espírito fundante do país, que, apesar de seus paradoxos históricos, como a escravidão, estabeleceu um sistema de liberdade e debate, e não de controle ideológico.
Também a liberdade de imprensa está sob ataque, através da instrumentalização da respectiva agência reguladora. O caso da ameaça de cassação da licença da emissora ABC pelo Presidente da Comissão Federal de Comunicação, resultando no afastamento do comediante Jummy Kimmel, é um exemplo de censura contra a mídia considerada hostil à atual Administração. Trump classifica a cobertura contrária ao seu governo como “trapaça” e promove o banimento de jornalistas do acesso à Casa Branca e ao avião presidencial, admitindo apenas repórteres amistosos à Administração atual. Isso limita o acesso à informação e corrompe o papel fiscalizador da imprensa.
O relatório do Ranking Mundial da Liberdade de Imprensa de 2024 reporta a queda dos EUA da 55ª para a 57ª posição no ranking de liberdade de imprensa da Repórteres Sem Fronteiras, uma organização não governamental internacional, cujo objetivo declarado é defender a liberdade de imprensa no mundo. O ranking avalia a situação do jornalismo em 180 países e territórios, segundo critérios como a “possibilidade efetiva de jornalistas produzirem e divulgarem informações de interesse público, independentemente de interferência política, econômica, jurídica e social e sem ameaças à sua segurança física e mental. O rebaixamento dos EUA é um indicador preocupante da erosão dos princípios republicanos no país, pondo em cheque o seu status de "democracia de primeira linha".
O uso estratégico da polarização ideológica e de mecanismos de vigilância social reforça a tendência autoritária e mina a coesão cívica. Recentemente, o vice-presidente, Jay Devens, endossou uma campanha para que cidadãos denunciem aqueles que se "alegram com o assassinato de Charlie Kirk"", o ativista político pro-Trump assassinado, resultando na demissão de dezenas de pessoas, numa campanha de delação que caracteriza um mecanismo de controle social e de perseguição de opositores.
O Republicanismo Cívico norte-americano buscou, através do sistema de representação, garantir que o governo agisse em prol do bem comum, e não no interesses de determinado grupo. A retórica do "bem e do mal", adotada por Trump, promove a polarização, divide a nação e cria uma potencial espiral de violência política, desviando-se do ideal de uma sociedade civilizada e plural.
O cenário atual revela um padrão preocupante. A administração afasta-se do ideal de governo limitado e da proteção dos direitos individuais e da imprensa para adotar uma lógica de poder centralizado, instrumentalização institucional e controle da narrativa, valendo-se do sentimento nacionalista e da religião para galvanizar suas bases e deslegitimar a oposição. Para tanto, a atual Administração instrumentaliza a fé cristã, dada a sua importância histórica na moralidade privada e na ética cívica norte-americana, para justificar ações políticas que violam a própria estrutura de governo limitado.
O problema não é a fé, mas o uso da religião como ferramenta política para deslegitimar a oposição (retórica do bem e do mal) e para justificar o esvaziamento institucional, como se observa em outros regimes autoritários. O fenômeno aproxima a atual Administração norte-americana do conceito de Autocrata Eleito, que utiliza o mandato popular para desmantelar as instituições democráticas de dentro para fora.
Na política externa o Presidente Trump declara o déficit da balança comercial dos EUA uma “emergência nacional”, para invocar a aplicação do International Emergency Economic Power Act (IEEPA), de 1977, arvorando-se de plenos poderes para instituir tarifas comerciais sobre os países de todo o mundo, sem consultar o Parlamento. Embora o déficit da balança comercial norte-americana seja um fenômeno que ocorre consistentemente desde a década 70 do século passado, para valer-se da IEEPA, Donald Trump alega que o déficit representa uma ameaça inusitada e extraordinária à segurança nacional e econômica dos EUA.
Embora o sistema de freios e contrapesos ainda esteja em vigor, a velocidade em que as instituições se degeneram e o Poder se torna cada vez mais centralizado e repressivo, demonstrando a "aceleração do autoritarismo", aumenta o risco de erosão dos fundamentos da democracia norte-americana.
Os protestos "No Kings" contra o Presidente Donald Trump, que reuniram cerca de sete milhões de americanos, denunciam ações do Presidente que demonstram uma busca por autoridade plenária (poder absoluto), como a alegação de poder demitir quem quiser, gastar fundos federais sem aprovação do Congresso, lançar ataques letais sem autorização explícita e usar agências como o Departamento de Justiça e a Receita Federal (I.R.S.) para perseguir oponentes políticos, críticos e doadores de inclinação liberal.
Em artigo de 21/10/2025, o jornal The New York Times cobriu a reação satírica de Jon Stewart, em The Daily Show, aos protestos "No Kings" contra o Presidente. Stewart utilizou uma inspeção surpresa da Declaração de Independência (o "protesto original contra os reis") para satirizar a insistência dos Republicanos de que o Presidente Trump não é um rei, apontando que a conduta de Trump se alinha a várias das 27 queixas específicas listadas contra o rei na Declaração.
As fundações dos Estados Unidos, construídas sobre as ideias do Iluminismo, contra o Despotismo, encontra-se sob uma pressão institucional e ideológica sem precedentes. A adoção da controversa Doutrina da Unidade do Executivo (UET), com base na qual o Presidente reivindica uma autoridade plenária sobre o braço Executivo, aliada a práticas típicas de regimes autoritários, como o esvaziamento institucional, em que as instituições são enfraquecidas até perderem sua autonomia, o uso da censura e do controle da narrativa como mecanismos de controle social e a imposição da Lealdade ao Líder em detrimento da Lealdade à Lei, que prejudica o funcionamento da burocracia e imobiliza o Legislativo, comprometendo o funcionamento dos checks and balances, subverte a ordem constitucional..
Embora a resiliência da arquitetura constitucional americana ainda se manifeste, a aceleração do autoritarismo representa uma ameaça aos ideais sobre os quais os Pais da Pátria construíram a nação.