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OPINIÃO | A Regularização Fundiária de lote único: flexibilizar para incluir

Por Ian Cavalcante

17/10/2025 às 12h20

O Brasil ainda enfrenta o desafio de reconhecer juridicamente o território onde o povo já construiu sua vida. Embora o direito à moradia esteja consagrado no artigo 6º da Constituição Federal, milhões de brasileiros seguem invisíveis ao registro imobiliário. A Regularização Fundiária Urbana (REURB), instituída pela Lei nº 13.465/2017 e regulamentada pelo Decreto nº 9.310/2018, surgiu como instrumento para corrigir essa distorção histórica, incorporando assentamentos informais consolidados ao ordenamento jurídico. Dentro desse marco, emerge um debate que reflete a própria tensão entre a norma e a realidade: a possibilidade de aplicar a REURB a um único lote.

Muitos questionam se a regularização fundiária poderia atingir uma única unidade imobiliária, uma casa isolada dentro de um bairro informal. Para alguns, a REURB só faria sentido se aplicada a um conjunto de moradias — um núcleo inteiro. Mas essa interpretação não encontra respaldo na lei. O artigo 11 da Lei nº 13.465/2017 estabelece que os beneficiários podem ser “individual ou coletivamente”, e a legitimação fundiária incide sobre a “unidade imobiliária” objeto da regularização. Assim, não há exigência mínima de quantidade de ocupantes: o que legitima a aplicação da REURB é a existência de uma situação fática consolidada, ainda que isolada, merecedora de integração ao território formal.

“Flexibilizar não é abolir critérios; é adaptar a norma ao território para concretizar o direito à cidade.”

Essa ideia sintetiza o espírito da REURB e, em especial, da REURB de lote único. Em diversas cidades, sobretudo nas regiões Norte e Nordeste, famílias vivem há décadas em imóveis que, embora integrados ao tecido urbano, permanecem juridicamente irregulares. Trata-se, muitas vezes, de casas construídas sobre terrenos de antigos proprietários ausentes, glebas aforadas ou áreas urbanas consolidadas sem matrícula. Exigir que toda a comunidade seja regularizada antes de se titular aquele morador seria negar efetividade ao próprio direito fundamental que a lei busca assegurar.

O Decreto nº 9.310/2018 reforça essa compreensão ao definir o “núcleo urbano informal consolidado” como aquele de difícil reversão, considerando o tempo de ocupação, a natureza das edificações e a existência de infraestrutura mínima. É a consolidação — e não a quantidade — que confere legitimidade à regularização. Nesse contexto, a REURB individual é um meio de fazer o Estado reconhecer juridicamente o que a sociedade já reconheceu de fato: o direito de morar com segurança e dignidade.

“O foco é transformar fato consolidado em direito reconhecido — sem fazer da exceção a regra nem da regra um obstáculo injusto.”

A flexibilização prevista na lei não é licença para o arbítrio. Ao contrário: é um ato de racionalidade jurídica e social. Ela existe para adequar os padrões urbanísticos à realidade de núcleos que jamais se enquadrariam nos parâmetros rígidos de um novo loteamento. A própria norma autoriza o município a ajustar exigências como recuos, dimensões mínimas de lote e percentual de áreas públicas, desde que mantidas as condições de segurança, salubridade e habitabilidade. É o que se chama de justiça de resultados — quando a forma não pode anular o conteúdo.

Nesse sentido, Michely Freire Fonseca Cunha bem observa que “não existe uma Reurb certa, mas uma Reurb possível, construída à luz da realidade local”. Essa leitura, amparada no princípio da proporcionalidade, é o que dá vitalidade à política pública. A regularização deve ser um instrumento de inclusão, não de burocracia. E, como ressalta Nelson Saule Jr., o processo precisa “integrar as dimensões jurídica, urbanística, ambiental e social, articulando-se ao Estatuto da Cidade e à gestão democrática do território.” Ou seja, regularizar é mais do que entregar títulos: é integrar o cidadão à cidade formal e garantir condições reais de permanência e de dignidade.

A REURB de lote único é, portanto, juridicamente viável e socialmente necessária. Sua aplicação é legítima quando há ocupação consolidada, interesse social e finalidade pública. Cada caso deve ser examinado com prudência, para que o instrumento não se converta em mera formalização cartorial ou, pior, em legalização de privilégios. “Dar o título não basta; é preciso garantir permanência, serviços e futuro.” Por isso, políticas complementares, como cláusulas de inalienabilidade temporária ou direito de preferência do poder público, são medidas que asseguram que a regularização não resulte em gentrificação e nova exclusão.

Há, evidentemente, limites materiais. A REURB não deve alcançar áreas de risco, de proteção ambiental ou situações que violem o planejamento urbano. O equilíbrio entre o direito à moradia e o meio ambiente equilibrado é o que preserva o caráter ético e sustentável da política urbana. Onde houver perigo à vida, a solução deve ser o reassentamento digno, e não a chancela do risco.

Em síntese, a regularização fundiária de lote único não desvirtua a política urbana, mas a torna mais humana. Cada matrícula aberta onde a vida já se consolidou aproxima o Brasil legal do Brasil real. “Regularizar o consolidado é cumprir a Constituição, não afrontá-la.” A REURB individual é a tradução concreta do princípio da função social da propriedade: um Estado que reconhece juridicamente o que o povo construiu de fato. Aplicada com prudência, transparência e finalidade pública, ela transforma exclusão em cidadania, invisibilidade em pertencimento e promessa constitucional em chão habitado.

Advogado Ian Cavalcante - (Divulgação) Divulgação
Advogado Ian Cavalcante