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Mães por inteiro: quando o amor e a coragem andam juntos

Muitas mães, especialmente as que são solo, enfrentam o desafio de lidar com o trabalho e o cuidado com os filhos sem uma rede de apoio. Essa sobrecarga se torna exaustiva, com as mulheres precisando levar os filhos para o trabalho devido à falta de opções, o que aumenta o desgaste físico e psicológico. Em meio a essa rotina cansativa, muitas não se sentem motivadas a celebrar o Dia das Mães, já que a exaustão e as responsabilidades diárias são imensuráveis. Reconhecer essa invisibilidade e sobrecarga é importante para que essa maternidade exaustiva não seja romantizada.

Amor em meio à exaustão: a rotina silenciosa de uma mãe solo

Maria da Cruz Pereira da Silva (38) encara a mesma rotina árdua no Mercado do Parque Piauí, na zona Sul de Teresina, há 15 anos, desde quando começou a trabalhar no local ainda com o pai, vendendo frutas e verduras. Anos depois, com o casamento e a chegada do filho, a responsabilidade aumentou — principalmente porque se tornou mãe solo. Separada, é Maria da Cruz quem cuida sozinha de tudo. Uma rotina extremamente cansativa e silenciosa.

As marcas da luta diária estão estampadas em seu rosto. Ela acorda de madrugada para ir à Ceasa comprar os produtos que venderá em sua banca, que abre às 7h. Mas, antes de começar o trabalho, já fez o café da manhã e arrumou o filho, José Antônio (9), para levá-lo ao reforço escolar. Enquanto o menino estuda, ela segue na labuta até as 13h. Após o reforço, José encontra-se com a mãe no mercado, onde fica até o meio-dia, exigindo da trabalhadora ainda mais cuidado. Maria precisa estar atenta a tudo: aos fregueses, ao troco, às frutas e ao filho, que circula entre as bancas.

Depois que fiquei mãe solo, tem sido difícil, porque são muitas responsabilidades. Com ele, a rotina ficou mais pesada. Ele me ajuda com a maquininha de Pix. Gosta de estar aqui, mas é puxado. Tenho que ficar de olho nele o tempo todo

Maria da Cruz Pereira da Silva feirante

Quando encerra o turno, a feirante segue rapidamente para casa. Ela ainda precisa preparar o almoço e levar José para a escola. Às vezes, o pai de Maria da Cruz “dá uma força” e consegue levar o neto à escola, mas isso nem sempre é possível, já que moram distantes.

Assis Fernandes/ODIA
Maria da Cruz, mãe de José Antônio, precisa estar atenta a tudo: aos fregueses, ao troco, às frutas e ao filho, que circula entre as bancas

Em meio a tanta turbulência e exaustão, não sobra tempo nem disposição para Maria da Cruz comemorar ou apreciar momentos bons e alegres, como o Dia das Mães. A data tornou-se apenas mais um dia, em meio a tantos outros, de trabalho com a casa, de cuidado com o filho e com as responsabilidades diárias.

“Sinto que falta algo. Não sou tão feliz com minha vida, é muita luta. Infelizmente, há muita maldade onde eu trabalho. É difícil criar um filho sozinha, muito cansativo. Mas, quando ele está aqui comigo, pelo menos fico de olho e vejo o que está fazendo”, relata, emocionada.

Assis Fernandes/ODIA
Maria da Cruz encara a mesma rotina árdua no Mercado do Parque Piauí, na zona Sul de Teresina, há 15 anos

Mas, mesmo em meio à rotina exaustiva, ainda sobra espaço para demonstrações de carinho e amor entre mãe e filho. O abraço e o sorriso selam esse laço materno que nunca será desfeito — por mais dura que a vida seja.

Trabalho e maternidade: “prefiro trazê-la, mesmo com as dificuldades”

Quem passa apressado talvez nem perceba, mas, por trás do balcão com cabos e carregadores, está a pequena Ester Radassa (7). A menina acompanha a mãe, Maria Farias (41), que vende acessórios de celular no Mercado do Parque Piauí, na zona Sul de Teresina. O negócio é recente, e mãe e filha ainda estão se adaptando à rotina.

Assis Fernandes/ODIA
Maria Farias, com a filha Ester, tenta se adaptar à nova realidade

A comerciante divide seus dias entre os compromissos do trabalho e a maternidade — um esforço diário que exige equilibrar o sustento da casa e se fazer presente na criação e no desenvolvimento da filha. Maria Farias decidiu levar a menina para seu local de trabalho por não ter com quem deixá-la.

“Já tive a experiência de deixá-la com uma cuidadora, mas fiquei angustiada e não foi legal, então preferi trazê-la comigo, mesmo com todas as dificuldades”, explica Maria Farias, que trabalha no mercado com o primo, responsável pelos consertos dos aparelhos.

Ester fica com a mãe todas as manhãs. Ali, entre os carregadores e as películas, a menina cresce vendo o mundo pelo olhar atento da mãe — que, mesmo exausta, não larga a mão da filha. À tarde, Maria a leva para a escola e retorna ao trabalho. No fim do dia, vai buscá-la novamente. Tudo sozinha. Nos fins de semana, quando não há aula, a comerciante precisa improvisar: ou encontra alguém de confiança para ficar com a filha, ou passa o dia todo com ela no mercado.

É muita responsabilidade. A criança toda hora exige atenção, mas é prazeroso, porque fico mais perto dela. Porém, é algo complicado. E como ela vê minha rotina, já consegue entender de onde a mãe dela tira o sustento da casa, começa a ter noção de responsabilidade e de trabalho

Maria Fariascomerciante

Maria não romantiza a luta diária. Ser mãe, mulher, dona de casa e trabalhadora ao mesmo tempo não é fácil. Mas, mesmo na exaustão, ela reconhece o valor de estar ao lado da filha. “Se eu tivesse um emprego formal, não conseguiria ficar com ela. Teria que deixá-la com alguém, e isso sempre traz preocupação. É tudo muito cansativo. Às vezes a gente acha que não vai dar conta, mas temos que respirar fundo e seguir”, confessa.

O cansaço invisível das chefes de família

A cena é cada vez mais comum, mas ainda pouco comentada: mulheres que precisam levar seus filhos para o trabalho por não terem com quem deixá-los. Essa realidade está longe de ser uma escolha. Na verdade, ela revela uma sobrecarga imensa e um cansaço estrutural que recai sobre os ombros de mães, muitas vezes chefes de família, que vivem sem rede de apoio e com pouca ou nenhuma compreensão da sociedade

Segundo o Censo Demográfico 2022, divulgado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 49,1% das unidades domésticas brasileiras têm mulheres como responsáveis. Um aumento significativo em relação ao Censo de 2010, quando era 38,7%. No Piauí, 50,4% das unidades domésticas têm mulheres como chefes de família.

Por trás desses números está a figura de uma mulher que precisa conciliar trabalho, cuidado dos filhos e a gestão da casa, muitas vezes sem qualquer tipo de suporte. É o que explica a socióloga Bruna Mesquita.

As mulheres lutaram por todas as conquistas sociais, como entrar no mercado de trabalho, votar, entre outros direitos, mas nunca deixaram de trabalhar dentro de casa. Ou seja, foram gerados acúmulos de papéis sem nenhuma divisão, mesmo para as mulheres que não são mães solo e têm companheiros, pois elas também sentem essa sobrecarga, como se vivessem a maternidade de maneira solo

Bruna Mesquitasocióloga

Grande parte dessas mulheres são mães solo. Elas não têm com quem dividir o cuidado dos filhos, e tampouco podem contar com o apoio de creches, com horários flexíveis ou programas sociais que considerem suas realidades. Ao serem obrigadas a levar os filhos para o trabalho, essas mães enfrentam julgamentos, constrangimentos e até retaliações. Há ainda relatos de assédio moral, de questionamentos sobre produtividade e até mesmo sugestões de que o simples fato de serem mães as tornam menos competentes. “Muitas ouvem que filhos atrapalham ou que a produtividade diminuiu, enquanto esse tipo de comentário não é feito aos pais. É mais uma vez o machismo estrutural imperando na relação das chefias e nos olhares para desenvolvimento da sua maternidade e social”, relata a especialista.

O impacto desse descaso é extremamente negativo para essas mães, uma vez que a sociedade, em campanhas publicitárias e datas comemorativas, como o Dia das Mães, reforça o lado materno de uma mulher guerreira e heroína, e acaba por não acolher causas de mães que vivem realidades completamente diferentes. Nesse sentido, a socióloga Bruna Mesquita reforça a necessidade de se questionar sobre como é visto esse papel das divisões sociais.

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Campanhas publicitárias e datas comemorativas, como o Dia das Mães, reforçam o lado materno de uma mulher guerreira e heroína, e acaba por não acolher causas de mães que vivem realidades diferentes

O impacto psicológico e físico dessa sobrecarga é imenso. São mulheres que vivem em constante estado de alerta, que não podem adoecer, que não têm descanso real. E, mesmo assim, são romantizadas como "mulheres guerreiras", como se esse rótulo fosse suficiente para justificar o abandono social que enfrentam.

"Ainda existe uma romantização sobre a ideia dessa mãe batalhadora e que, se ela escolhe a maternidade, precisa abraçar o mundo com todos os braços, tal como um polvo e seus tentáculos. É preciso ser pensado em uma maior flexibilidade da jornada de trabalho e também nessas mulheres, para que elas não tenham punições por gestar e gerir essa maternidade. Precisamos falar com mais afinco dessa maternidade real, pois, no dia a dia, são mulheres que estão cansadas, que precisam lidar com os desafios econômicos para manter uma casa, para gestar, gerir, cuidar dos filhos. Temos que pensar como podemos cuidar, auxiliar e trazer redes de apoio para essas mães. Pensar nas mulheres ao invés de florear a maternidade, entendendo que há um descaso e que ser mãe não diminui em nenhum momento a competência de ser uma mulher”, conclui a especialista.

Exaustão materna: como a ausência de suporte impacta a saúde das mães

A falta de uma rede de apoio eficaz, segundo a psicóloga Nadja Nunes, é a raiz desse problema, e isso impacta diretamente a vida dessas mães, gerando um desgaste físico e psicológico profundo. Elas não apenas se veem forçadas a dividir sua energia entre o trabalho e a maternidade, como também precisam lidar com a ausência de um suporte em casa.

“A questão principal com as mães é a falta de uma boa rede de apoio, seja com o companheiro (a) ou familiares, para que ela possa retomar da melhor maneira possível seus afazeres laborais ou até mesmo os domésticos”, explica a psicóloga. Muitas vezes, o acesso à educação infantil, como creches ou escolas, só ocorre a partir dos dois anos de idade, e mesmo assim, isso depende da condição financeira da família. Para as mães que estão sozinhas, a carga aumenta ainda mais, já que são as responsáveis por tudo.

Nessa realidade, a mulher se vê sem tempo ou espaço para si mesma, sem poder descansar ou cuidar da própria saúde. Essa mulher assume múltiplas jornadas: mãe, profissional, dona de casa, e muitas vezes, sente que nada disso é suficiente. A exaustão física chega a ser evidente e o cansaço mental é ainda mais desafiador.

Essa exaustão é física e mental: física porque a mãe precisa se dividir em multitarefas e múltiplas jornadas de trabalho, e mental, por toda a carga de organização de logística do funcionamento da casa e da família (já que essa é uma função predominantemente colocada para a mulher/mãe), como os cuidados com os filhos e a lida com o trabalho doméstico. Isso faz com que as mães esqueçam ou estejam sempre deixando para depois os cuidados consigo mesmas, o que também é um fator adoecedor

Nadja Nunespsicóloga

Esse cenário não só compromete a saúde da mãe, mas também afeta suas relações familiares e sociais. A falta de apoio acaba criando um ciclo vicioso, onde as frustrações do dia a dia não podem ser elaboradas de forma saudável. Muitas mães acabam descontando esse estresse nas pessoas que estão ao seu redor, especialmente nos filhos, que não têm como reagir a isso. Embora muitas vezes esse comportamento não seja intencional, as consequências podem ser duradouras.

“Isso pode gerar consequências na relação com os filhos a longo prazo, no desenvolvimento da personalidade deles, e no processo de ensino e aprendizado das crianças”, alerta a psicóloga. As consequências podem se estender ainda mais, afetando a relação futura da mãe com seus filhos, principalmente quando ela chegar à fase idosa e precisa de cuidados. Os filhos, que não tiveram um vínculo afetivo saudável com a mãe, podem não estar disponíveis para oferecer o apoio necessário.

Além disso, a falta de uma rede de apoio de qualidade também é um fator importante a ser considerado. “Quando falo de uma ‘boa rede de apoio’, não me refiro apenas a ter alguém presente, mas à qualidade dessa presença”, explica a psicóloga. Muitas vezes, as mulheres têm apoio, mas ele não se traduz em uma divisão real de responsabilidades. O suporte precisa ser compartilhado de maneira que a mãe não se sinta sobrecarregada e isolada.

Para muitas dessas mães, datas comemorativas como o Dia das Mães passam despercebidas, pois o cuidado com a família e os filhos nunca cessa, nem mesmo nesses dias. Mesmo quando a mãe está doente, em crise emocional ou enfrentando um processo depressivo, ela precisa continuar com suas responsabilidades, afinal, a vida não pode parar. Esse desgaste físico e emocional é um dos principais fatores que contribuem para a Síndrome de Burnout Materno, um processo de exaustão profunda, que afeta não apenas o corpo, mas a mente.

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O suporte precisa ser compartilhado de maneira que a mãe não se sinta sobrecarregada e isolada.

“É super compreensível [muitas mães não se sentirem empolgadas para celebrar o Dia da Mães] já que muitas mães estão dando além do que podem e do que tem no dia a dia, e para muitas vai ser só mais um dia em que terão que cuidar dos filhos e da família, exatamente por não terem uma boa rede de apoio, pessoas que possam compreender as necessidades dessa mãe e de alguma forma tentar saná-las”, comenta.

Nadja Nunes lembra ainda que a sociedade, muitas vezes, coloca a mulher como sendo frágil e delicada, mas espera que ela assuma todas as responsabilidades com maestria. Esse estigma de que a mulher deve ser capaz de se sustentar emocionalmente e estar sempre disponível para os outros é um peso que muitas mulheres carregam sozinhas.


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