Muito se discute sobre o futuro do planeta diante da crise climática mundial, escancarada pelo aumento das temperaturas no último século e dos cada vez mais comuns eventos climáticos extremos – a exemplo das chuvas torrenciais que culminaram na tragédia vivida pelo Rio Grande do Sul, em 2024. Só que, na maioria das vezes em que se debate o assunto, a temática é levada para um contexto global, e que parece ser distante das realidades locais, complexas e muito particulares.
Mas é necessário alertar todos que as mudanças climáticas em nível global se traduzem em impactos no dia a dia da população, seja nas grandes metrópoles ou nas pequenas cidades brasileiras. É o caso de Picos, no interior do Piauí, que entre dezembro de 2024 e janeiro de 2025 enfrentaram chuvas intensas e fora do comum. No dia 29 de dezembro de 2024, choveu na cidade cerca de 165 milímetros, já no dia 14 de janeiro, a região foi acometida por um evento climático extremo, combinado com a intensidade das chuvas de 135 milímetros, resultando em uma série de desastres naturais.
A cidade, localizada na região Centro-Sul do Piauí (distante 314 km de Teresina), ficou com ruas alagadas, mais de 27 mil pessoas foram afetadas, incluindo 600 famílias desabrigadas, além de três mortes confirmadas, sendo uma por afogamento e duas por choque elétrico. As mudanças climáticas que impactam o dia a dia da população foi o foco dos debates promovidos pelo Instituto Clima e Sociedade (iCS) no Centro do Rio, durante a Rio Climate Action Week, ocorrida em agosto deste ano.
Mais de 100 pessoas se reuniram na Casa Brasil, na capital, para o debate “Esse tal do Efeito Estufa”. O encontro, que fez parte da agenda oficial da Rio Climate Action Week, discutiu os impactos das mudanças climáticas no cotidiano da população. A ativista climática e campeã de juventude da COP30, Marcele Oliveira, conduziu a conversa com a líder do comitê científico da COP30, Thelma Krug, o professor da FGV Eduardo Assad, o médico patologista Paulo Saldiva, da USP, e o multiartista Criolo.
A proposta do encontro foi mostrar que a crise climática não é um debate restrito a acadêmicos, mas sim uma questão concreta, com efeitos já percebidos no dia a dia: do aumento do preço dos alimentos e do impacto na saúde física e mental até a ocorrência de secas, enchentes e o crescimento da violência doméstica em ondas de calor.
O primeiro tema discutido foi o impacto da crise climática na moradia e na saúde. Professor da Faculdade de Medicina da USP, Paulo Saldiva ressaltou que, em dias de calor extremo, quando a temperatura sobe cerca de 2,5%, o risco de morte natural aumenta em 50%. Ou seja, durante uma onda de calor, a mortalidade cresce de forma significativa. Ele explicou que esse efeito se intensifica, entre outros motivos, porque muitas pessoas passam longos períodos se deslocando para o trabalho, sem condições adequadas de cuidar da própria saúde. A própria casa, em especial da população vulnerabilizada, também é um desafio.
“Num dia de calor, por exemplo, pense em uma residência simples, em que o morador construiu um segundo piso sobre a laje. Essa estrutura retém o calor, que pode chegar a 60 ou 70 graus dentro do imóvel, algo quase insuportável”, explicou o especialista. O Piauí pode ser um estado extremamente afetado por situações climáticas extremas, como as ondas de calor, como foi comentado por Eduardo Assad, pesquisador da FGV, que fez uma correlação entre o aumento das temperaturas e as chuvas torrenciais e a perda da vegetação em alguns municípios do próprio estado, como o território desertificado em Gilbués.
“A gente acompanha a situação do tapete vegetal do Piauí há muitos anos. E dois locais estão entrando em um nível de ‘aridização’, ou seja, estão deixando de ser semiárido para se tornar árido, deserto. Essas ondas de calor, essas chuvas torrenciais são reflexo disso. O Piauí, assim como todo o semiárido brasileiro, é muito afetado por essas questões referentes às ondas de calor e a falta de água”, explica. O pesquisador complementa que para minimizar esses problemas, é necessário um trabalho de “revegetação com plantas nativas, que produzam algo que cubra o solo”.
A relação entre meio ambiente e a produção agrícola também entrou em pauta. Eduardo Assad lembrou que, a produção de soja no Piauí pode afetar as condições climáticas do Piauí. “Esse negócio de soja não é bem o que tem que ter lá. Não tenho nada contra a soja, mas lá não é o local para ter soja. É entrar com as ações de adaptação e recuperação dessas áreas. Temos que estancar esse processo de ‘aridização’, de desertificação. Temos que lembrar que o Piauí é um estado vulnerável e precisamos controlar isso”, comentou Assad.
O evento mostrou que os debates sobre a crise climática precisam englobar todas as pessoas e setores da cidade. Criolo, cantor e multiartista, ressaltou que nem todas as pessoas sofrem da mesma forma os efeitos das mudanças climáticas, já que comunidades de baixa renda, por exemplo, têm menos acesso a moradias de qualidade ou opções de saúde e transporte. E cantarolou um trecho da música “Barracão de Zinco”, composição de Luís Antonio e Oldemar Magalhães, ao lembrar da sua casa na infância, um barraco com telhado de zinco.
Conversão para energia verde passa pelo Piauí
Mudar esse cenário do presente e do futuro requer uma aposta em uma conversão energética. E os estados do Nordeste podem ser o ponto de partida do Brasil para a energia verde, como é o caso do Piauí. Quem colocou o estado como destaque na produção de energia renovável foi Victória Santos, gerente de Transição Energética do iCS, durante palestra. “O estado do Piauí já tem uma produção líquida de energias renováveis de seis giga, ou seja, ele produz mais energia renovável do que ele consome. E é um estado que tem um potencial muito grande na produção de hidrogênio verde”, afirmou.
O estado pode liderar as iniciativas relacionadas ao Hidrogênio Verde e, inclusive, já conta com a lei nº 8.459, que institui a política pública estadual do Hidrogênio Verde no Piauí. A política tem 16 objetivos, dentre os quais aumentar a participação do hidrogênio verde na matriz energética do Piauí, estimular o uso do hidrogênio verde em diversas aplicações como, por exemplo, produção de fertilizantes agrícolas, estabelecer regras e incentivos para o desenvolvimento da cadeia produtiva do H2V e atrair investimentos em infraestrutura de produção e aplicação do Hidrogênio Verde.
Com a sanção da política pública estadual, o Piauí tem condições de ter uma cadeia produtiva de hidrogênio verde, ou seja, empreendimentos ligados entre si que façam parte de setores da economia que prestam serviços e utilizam, produzem, geram, industrializam, distribuem, transportam ou comercializam H2V e os produtos derivados de seu uso.
“E o estado possui uma das perspectivas mais arrojadas para a agenda de transição energética e de atração de investimentos de baixo carbono. E tem um potencial grande de hidrogênio verde e para a atração de outras cadeias industriais. O Piauí está alavancando a agenda do powershoring (que é realocação estratégica da produção industrial para regiões com abundância e baixo custo de energia limpa e renovável) para outros estados, por meio do Consórcio Nordeste, já que o estado está com a liderança do Consórcio”, destacou Victória Santos.
Em todo o país há 57 projetos em diferentes estágios de desenvolvimento e o Piauí se destaca como um dos estados que estão em busca de investimentos na área do hidrogênio verde. Os projetos de H2V já somam no Estado cerca de R$ 212 bilhões em investimentos.
Sobre o Instituto Clima e Sociedade
O iCS é uma organização filantrópica que apoia o enfrentamento das mudanças climáticas, com foco no Brasil, por meio do emprego de um rol amplo de abordagens e ferramentas que vão desde o apoio institucional e financeiro a organizações sem fins lucrativos, passando por apoio ao desenvolvimento de pesquisas técnicas e científicas, formação de redes e desenvolvimento de capacidades em diferentes segmentos econômicos da sociedade brasileira.
Com uma rede relevante e diversa de parceiros e stakeholders, o iCS fomenta a construção de pontes entre diferentes setores e a promoção de diálogos e trocas entre ecossistemas, buscando ampliar a conexão e reduzir as abordagens em silos. O Insituto Clima e Sociedade entende que essa abordagem sistêmica é essencial para que a descarbonização da economia brasileira se traduza em oportunidades de desenvolvimento socioeconômico do país.
Criado logo após o Acordo de Paris, em 2015, o iCS, em conjunto com parceiros e donatários, vem construindo um acervo de experiências e conhecimento útil para o avanço da agenda climática e a melhoria da qualidade de vida da população brasileira.
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