Nesta reportagem especial, o Portal O Dia investiga a luta contra o vício em drogas no Piauí e mostra como a capacitação e qualificação profissional podem transformar vidas
Por Emelly Alves e Iris Sales
“Eu fui prisioneiro do álcool durante 30 anos. Bebia para dormir e acordava para beber. A minha abstinência era incomparável, terrível. Quando resolvi dar um basta, já tinha passado por muito sofrimento”. A declaração é de um mecânico teresinense de 59 anos, que passou metade de sua vida convivendo com o vício. Moura*, como prefere ser identificado, chegou a perder a família, o emprego e a saúde por conta do uso abusivo de bebidas alcoólicas. Hoje, em recuperação, ele luta diariamente para manter a sobriedade e a paz que por décadas o álcool lhe tirou.
Casos como esse ilustram uma realidade persistente: o uso abusivo de drogas. Segundo dados das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC), 35 milhões de pessoas em todo o mundo enfrentam transtornos graves relacionados ao uso de substâncias. Em 2022, mais de 292 milhões de indivíduos consumiram algum tipo de droga, um aumento de 20% em comparação à década anterior.
No Brasil, estima-se que cerca de 12 milhões de pessoas convivam com o consumo de drogas, sendo o álcool uma das substâncias mais presentes no cotidiano. Inserido em celebrações, encontros familiares e em rotinas de descontração, ele é visto como algo inofensivo em nossa cultura. Essa visão, no entanto, ajuda a mascarar que o consumo frequente de bebidas alcoólicas pode se transformar em uma dependência que corrói vidas e mina a dignidade humana.
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), o álcool é responsável por mais de 3 milhões de mortes anuais. No Piauí, o cenário também preocupa. Em 2022, o estado registrou a terceira maior taxa de mortes relacionadas ao alcoolismo no Brasil, conforme o Centro de Informações sobre Saúde e Álcool (CISA). Ao todo, foram contabilizados 1.282 óbitos atribuíveis ao consumo, sendo 78% das vítimas homens, principalmente com 55 anos ou mais.
Muito além de um hábito comum, a dependência de álcool ou outras drogas carrega um impacto devastador. O que muitas vezes começa como uma forma de alívio temporário se transforma em uma armadilha silenciosa. Com o passar do tempo, a substância deixa de ser um prazer ocasional e se torna uma necessidade incontrolável. A busca constante pela dose seguinte consome lentamente a vida do indivíduo. É o que relata Moura, que ao longo dos últimos oito anos enfrentou altos e baixos em seu processo de tratamento.
“Eu acordava às seis da manhã e minha esposa me dava cinco reais para comprar pão. Eu comprava dois reais de pão e gastava três em cachaça. Às oito da manhã, eu já estava embriagado. Esse foi o meu dia a dia por 30 anos”, relembra ele.
O sentimento de vergonha diante da família se misturava à negação de que tinha perdido o controle. "Eu dizia que bebia quando queria e que poderia parar na hora que quisesse. Mas a verdade é que virei dependente. Chegou ao ponto de eu não conseguir segurar uma xícara de café na mesa. Minhas mãos tremiam tanto que eu só conseguia parar se tomasse um gole de cachaça”.
O mecânico lembra que essa rotina o levou a perder tudo o que considerava mais importante na vida. "Perdi minha família, meu emprego, minha dignidade. Eu não ligava mais para nada. Só queria beber”, complementou. O ponto de virada veio quando ele percebeu que precisava de ajuda. Em 2016, buscou o grupo de Alcoólicos Anônimos e iniciou o processo de recuperação. Apesar de uma recaída nesse período, ele conseguiu retomar o tratamento e hoje está há um ano e seis meses sem beber.
“Quando procurei o AA pela primeira vez, passei quase dois anos sem beber. Mas tive uma recaída muito grande, que durou três anos. Nessa recaída, eu fui para o fundo do poço e quase tirei a minha própria vida. Pedia a Deus todo dia que me ajudasse a parar de beber”, comenta Moura.
Reconhecer que se tem um problema é um dos passos mais importantes — e também mais desafiadores — no processo de reabilitação do uso de drogas. No Brasil, essa dificuldade é evidenciada nos números: segundo levantamento do CISA, 75% dos consumidores abusivos de álcool acreditam que seu consumo é moderado.
Tem uma frase na nossa irmandade que diz: ‘Nessa guerra, você só vence quando admite que perdeu’. Reconhecer não é fácil, o processo é lento e dolorido. Enquanto você não admitir que é doente, você não consegue. Todo dependente químico é assim. Hoje reconheço que sou uma pessoa doente, um alcoólatra em recuperação.
Após enfrentar uma série de desafios decorrentes do alcoolismo (incluindo a perda da visão do olho direito devido ao agravamento da diabetes), o mecânico afirma que sua vida começou a tomar um novo rumo quando decidiu abandonar a bebida de vez.
“Para mim, no começo, parecia que o mundo tinha acabado. Eu pensava: ‘como vou viver essa vida?’. Se você não se dedicar e abrir mão de velhos hábitos, fica muito difícil. Não volto a frequentar lugares que antes frequentava porque são uma armadilha. Joguei 30 anos da minha vida fora por causa do álcool. Hoje, cada dia é uma luta, mas Graças a Deus estou superando”, compartilha.
O árduo processo de superação de um vício, porém, vai muito além de simplesmente parar de usar a droga. Isso ocorre porque a dependência química é considerada um transtorno de saúde mental, que envolve mudanças no funcionamento do cérebro e no comportamento da pessoa. Quem explica melhor é o psicólogo especialista em dependência química, Petrus Tôrres.
“A dependência química é um transtorno complexo que envolve o uso compulsivo de substâncias psicoativas, como álcool, tabaco, drogas ilícitas ou medicamentos, a ponto de o indivíduo perder o controle sobre o consumo. Durante o uso, as drogas liberam no cérebro neurotransmissores como a dopamina e serotonina, que ativam centros de prazer e ocasionam uma sensação de bem estar e euforia. Com o tempo, a pessoa precisa de doses cada vez maiores para alcançar o mesmo efeito, e a abstinência provoca sintomas físicos e emocionais difíceis de enfrentar”, afirma.
É importante desmistificar a ideia de que a dependência química é falha de caráter ou falta de disciplina. Ao contrário, trata-se de uma doença que exige um tratamento adequado e acompanhamento profissional. Nesse processo, o apoio dos familiares é fundamental, pois isso dá suporte para que a pessoa em tratamento consiga enfrentar o vício e reconstruir sua vida.
"Não é fácil para a família. Sempre lutamos para que ele conseguisse se libertar. No início, não sabíamos que era uma doença, achávamos que era apenas um hobby. Mas, com o tempo, foi piorando. Vimos que ele tinha vontade de parar, mas não conseguia. Ao longo dos anos, passamos por muito sofrimento, mas buscamos ajuda. Sabemos que, nesses casos, o abandono é ainda pior, pois quanto mais você abandona, mais a pessoa se afunda no vicio”, destaca Maria*, esposa do mecânico.
Ao relembrar sua história, Moura diz que a luta valeu a pena. “A minha vida mudou totalmente. Eu não tinha planos, agora eu tenho. Vejo um futuro melhor para mim e para minha família”.
Se a droga é uma prisão, o apoio e a capacitação são chaves para a liberdade
A dependência química é, atualmente, um dos maiores desafios enfrentados pela saúde pública no Brasil. No entanto, para superar esse problema, os pacientes precisam de mais do que apenas acompanhamento médico. É necessário que recebam apoio de forma que consigam romper o ciclo da dependência.
Um dos maiores obstáculos para a recuperação é o preconceito que envolve aqueles que sofrem dessa condição. O sociólogo Clériston Thomas explica que, muitas vezes, as pessoas que buscam tratamento são rotuladas e associadas a comportamentos desviantes, o que dificulta sua reintegração à sociedade.
É um estigma social profundamente enraizado em nossa sociedade, onde os dependentes químicos são frequentemente vistos como pessoas fracas. A dependência é associada à criminalidade ou tratada como uma escolha consciente, quando, na realidade, é uma condição de saúde.
Direcionando um olhar para esse público que é historicamente marginalizado no Brasil, o Ministério Público do Piauí (MPPI), por meio do Centro de Apoio Operacional de Defesa da Saúde (CAODS), criou o projeto ‘Juntos Renovando Vidas’, uma iniciativa que visa acolher e reabilitar pessoas em situação de vulnerabilidade devido ao uso de drogas.
A ideia vai além de oferecer tratamento: o projeto quer abrir portas para novas oportunidades, por meio de capacitação e reintegração ao mercado de trabalho. “Queremos mostrar que, por meio de alternativas de suporte, podemos realmente transformar vidas e reintegrar essas pessoas de forma digna”, pontua a promotora Karla Carvalho, idealizadora do projeto.
O Juntos Renovando Vidas é fruto de uma parceria estratégica entre o MPPI e diversas instituições, como o Senai, o Sebrae e o IFPI, com o objetivo de alcançar várias regiões do estado e garantir o acesso a direitos. Ele atua em colaboração com os Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPS AD), espaços que oferecem suporte psicológico e acompanhamento aos pacientes em Teresina, Floriano, Picos e Piripiri.
"O tratamento é estruturado de forma individualizada, com um plano terapêutico personalizado para cada paciente, que inclui suas demandas, vulnerabilidades, potencialidades e habilidades. O acompanhamento é feito por uma equipe de profissionais que compreende as necessidades de cada pessoa. Esse olhar personalizado é importante para que possamos ajudar de forma mais eficaz na reintegração social dessas pessoas”, explica Elizanda Pires, coordenadora do CAPS AD de Teresina.
O projeto foi desenvolvido no ano passado, a partir de uma demanda crescente nos CAPS AD, que se intensificou com os relatos de familiares buscando internações para filhos ou entes queridos em situação de dependência. Esse aumento na procura é refletido nos números registrados no Piauí. Entre 2020 e 2023, a quantidade de internações devido ao uso de substâncias psicoativas cresceu 78%, conforme o Observatório de Dados do Governo do Piauí.
Em um cenário onde a média de internação é de apenas 16 dias e muitos pacientes desistem do tratamento no meio do processo, a promotora Karla Carvalho observou um aspecto importante: a internação, por si só, não é suficiente. É preciso que exista uma rede articulada que promova suporte contínuo.
“A internação é apenas uma etapa inicial. O verdadeiro desafio está em compreender como aquela pessoa chegou a esse ponto e, mais importante, como podemos ajudá-la a construir um futuro diferente, com dignidade e sem os estigmas da dependência ou da criminalização”, ressalta a promotora.
Para garantir que os participantes do projeto tenham condições reais de voltar a conviver em sociedade, as instituições parceiras oferecem cursos profissionalizantes.
“Com o projeto social eles se tornam alunos do IFPI, recebem qualificação, assistência odontológica e acesso a benefícios como o refeitório. Além disso, podem se conectar com empresas que oferecem vagas de emprego, através da nossa plataforma de oportunidades. Estamos trabalhando em rede. Embora seja um projeto recente, já apresenta muitos ganhos. É muito bom ajudar a salvar vidas”, destaca a Pró-Reitora de Extensão do IFPI, Divamélia Oliveira.
No Senai, também se busca fomentar o empreendedorismo entre os participantes. "Nosso objetivo é fornecer as condições necessárias para que os alunos possam se inserir no mercado de trabalho, seja através do empreendedorismo ou sendo contratados por empresas, com habilidades que atendam às demandas do mercado atual", explica Sandra Ataíde, diretora de Educação Profissional e Tecnológica da entidade.
Essas parcerias foram oficializadas em abril deste ano, por meio de um acordo de cooperação técnica. Para a promotora Karla Carvalho, o Juntos Renovando Vidas é uma maneira de ajudar essas pessoas a encontrarem seus propósitos de vida.
“Queremos ajudá-los a entender o que os trouxe até aqui e como podem recomeçar. Por isso, o projeto propõe uma atuação conjunta, reconhecendo que o CAPS AD, por si só, não consegue reconstruir a vida social de ninguém. É necessário contar com o apoio de políticas intersetoriais, governamentais e não governamentais. Vivemos em uma sociedade que frequentemente marginaliza as pessoas com dependência química, isolando-as como se fossem parte de um grupo à parte. Uma das metas do projeto é justamente desconstruir esse preconceito e conhecer as histórias por trás de cada indivíduo atendido pelo CAPS AD".
Da dependência ao empreendedorismo
Uma das iniciativas do projeto Juntos Renovando Vidas é promover cursos livres de qualificação profissional, que visam oferecer ferramentas práticas para a reintegração econômica dos participantes, assim como uma nova esperança de recomeçar. Em dezembro de 2023, o projeto realizou oficinas em três municípios participantes. Em Piripiri, norte do Estado, foram ofertados duas opções: Produção Caseira de Pães e Bolos e Artesanato com Materiais Recicláveis. Ao todo, 30 pessoas participaram das atividades.
“Estamos lidando com pessoas que enfrentam um enorme preconceito, não só da sociedade, mas também de seus próprios familiares. Por isso, identificamos cursos que realmente despertassem o interesse deles e os motivassem a participar. O resultado foi surpreendente. Tivemos uma ótima adesão, e o número de inscritos superou todas as nossas expectativas”, ressalta a coordenadora do CAPS AD de Piripiri, Samilia Coelho.
Entre os participantes está Doriédson Oliveira, de 31 anos. Ele, que desde muito jovem enfrentou desafios relacionados ao uso de drogas, é hoje coordenador e monitor na Fundação Terapêutica Monte Tabor, que trata dependentes químicos em Piripiri.
Há três anos em acompanhamento no CAPS AD devido a ansiedade, ele encontrou na oficina de pães caseiros uma chance de reescrever sua história. O curso trouxe uma habilidade que ele agora utiliza para inspirar jovens que enfrentam problemas semelhantes aos que ele superou. Além disso, Doriédson transformou essa prática em uma fonte de renda, e agora vende seus pães aos finais de semana.
“Foi por meio do projeto que conheci o curso de panificação, e gostei muito de ter participado. Levei esse aprendizado para os meninos da casa terapêutica e foi muito gratificante para mim ter aprendido a culinária dos pães. Esse projeto é muito positivo, pois hoje posso dizer que tenho uma renda extra. Pude começar a empreender e isso para mim tem sido muito bom”, ressalta.
Mas, para chegar até esse momento, Doriédson precisou percorrer um longo caminho. Ele conta que desenvolveu o alcoolismo ainda muito jovem, o que acabou abrindo portas para o uso de outras substâncias na vida adulta, como a cocaína. Os anos de dependência química trouxeram inúmeros desafios.
“Eu comecei a beber aos 12 anos de idade. É algo que vem desde a minha adolescência. Quando cresci, desenvolvi problemas com o uso de cocaína, e acabava misturando as duas coisas. Isso já era normal na minha rotina, era parte da minha vida. Dormia e acordava bêbado. Cheguei a ter alucinações por causa da bebida e tive hepatite alcoólica. Sofri muito por causa do álcool e das drogas e não conseguia parar sozinho”, relembra ele.
Doriédson percebeu que estava doente quando se viu sozinho. Nenhum dos seus relacionamentos davam certo, sua família se afastava cada vez mais e aqueles amigos que antes estavam sempre com ele, haviam sumido. “Em 2021, percebi que ninguém queria estar comigo. Nem minha família, nem esposa, nem minha filha. Nesse dia, percebi que precisava dizer não, porque sabia que não aguentava mais. Decidi pedir ajuda no Monte Tabor e fui encaminhado para o CAPS AD”, detalha.
Assim como ele, outros jovens encontraram no CAPS AD um local de apoio e acolhimento. Em Piripiri, o espaço conta com cerca de 40 pacientes ativos semanalmente e atende também outros quatro municípios da região. No entanto, o número de inscritos chega a ser 32 vezes maior, o que evidencia a grande demanda por atendimento e o alto número de pessoas em situação de dependência na região.
“A maioria do nosso público é masculino, com idade entre 18 e 60 anos. Trabalhamos principalmente com demanda espontânea, ou seja, o paciente ou a família pode procurar ajuda diretamente. Além disso, a atenção primária nas UBS também é uma porta de entrada. Lá, os pacientes passam por uma triagem e, se necessário, são encaminhados aos CAPS AD”, afirma Samília Coelho.
Uma vez em tratamento, essas pessoas recebem apoio psicológico, participam de atividades recreativas, utilizam medicamentos para lidar com a abstinência, se necessário, e têm acesso a outros tipos de acompanhamento. No entanto, a principal mudança acontece internamente, em cada paciente. Eles passam por uma transformação pessoal para recomeçar uma nova vida, agora sóbrios.
Embora esteja em processo de superação, Doriédson reconhece que a luta é constante e que precisa permanecer sempre vigilante para não recair.
Parar de usar a droga da noite para o dia não é fácil. Os profissionais me deram muito suporte e eu percebi que estavam ali para o meu bem. Minha família viu que eu realmente queria mudar e se aproximou de mim novamente. Foi aí que entendi que ainda tinha jeito. Eu poderia recomeçar do zero e renascer a partir daquele momento. Vim do fundo do poço, da lama. E todos os dias eu vigio meus atos. Demorei muito tempo para subir esse degrau, mas se escorregar, caio no fundo do poço novamente.
Fim de um ciclo, início de uma nova vida
Com uma nova esperança de vida, vem também a vontade de crescer, aprender e desenvolver novas formas de ver o mundo, bem longe do vício. Mas, por conta do passado, muitos ex-dependentes químicos enfrentam dificuldades em retomar suas atividades diárias e, por isso, projetos como o Juntos Renovando Vidas são essenciais para promover a autonomia e viabilização do protagonismo.
“O reconhecimento do progresso faz com que os pacientes se sintam motivados, o que os incentiva a buscar uma reintegração no mercado de trabalho. Essas capacitações mostram que eles são capazes e que estamos oferecendo o apoio necessário para que sejam inseridos novamente no meio social e possam conquistar aquilo que tanto desejam”, acrescenta a coordenadora do CAPS AD de Piripiri.
A reinserção social vai além de um processo de cura física: ela é um ato de reconstrução da dignidade humana. É também mais do que um tratamento imediato para a dependência química. Trata-se de oferecer à pessoa a oportunidade de reconstruir sua autoestima, de retomar sua participação ativa na sociedade e de recuperar a esperança em um futuro melhor. Esse é o propósito maior do projeto Juntos Renovando Vidas: proporcionar a dependentes em recuperação uma chance real de recomeçar, de se sentir parte de algo maior, de encontrar um novo sentido para sua jornada.
Mas para que esse renascimento aconteça, é preciso muito mais do que apenas serviços de saúde. O ser humano necessita de uma rede de apoio que envolva a educação, o emprego, o acesso à cultura e à convivência social. Essa visão mais ampla é importante para romper o ciclo vicioso que prende muitos indivíduos à dependência química. O desemprego, a fome e a solidão não são fatores colaterais, e sim causas que alimentam o vício e dificultam a recuperação.
A realidade de quem luta contra o abuso de substâncias é marcada por uma sensação de vazio, de desesperança, e a falta de perspectivas. Por isso, a reintegração social é uma parte crucial do processo de recuperação. Em Picos, no Sul do Piauí, a história de Joel Filho exemplifica como dependentes químicos conseguem, a partir de uma rede de apoio, se restabelecer na sociedade. Ele passou muitos anos preso ao álcool e ao crack, mas foi capaz de dar a volta por cima
A dependência química nos rebaixa a um ponto em que nem conseguimos confiar em nós mesmos. Eu estava perdido. Quando olhava para minha filha, sabia que precisava mudar. Não queria que ela crescesse e me visse dessa maneira. O que eu seria para ela? Um exemplo de fracasso? Não, eu não queria isso para minha filha.
Em 2019, ele tomou a decisão de buscar ajuda. Com coragem, procurou o CAPS AD e iniciou um tratamento que mudaria sua história.
Hoje, Joel comemora a sua recuperação. “Faz cinco anos que parei de beber. Não foi fácil, mas a força vem de dentro, e é preciso querer. Eu decidi que queria ser um exemplo para minha filha, para minha família. Meu trabalho melhorou, reconquistei meus clientes, e a confiança que perdi foi restaurada”, relata Joel.
Segundo Rômulo Hommero, assistente social do CAPS AD de Picos, o local atende atualmente 384 usuários cadastrados, sendo a maioria de Picos e outros 18 municípios pactuados. Boa parte dos atendidos é composta por homens de 33 anos, pardos, desempregados e residentes na zona urbana de Picos. "A porta de entrada costuma ser o álcool, seguido pela nicotina e outras substâncias, como maconha, crack e cocaína", afirma Rômulo.
O assistente social enfatiza que iniciativas como o Juntos Renovando Vidas ampliam o impacto da instituição, ajudando a romper estigmas e fortalecendo o papel do CAPS como um agente de transformação social. "Nosso objetivo é superar o modelo de tratamento restrito ao uso de medicamentos e ampliar o acesso a uma recuperação integral, que inclua saúde, trabalho e convivência comunitária”.
Em 2025, o projeto continuará a expandir suas parcerias e a oferecer novas perspectivas para aqueles que buscam se reintegrar à sociedade. É o que comenta a promotora Karla Carvalho.
Para a transformação ser duradoura, a reintegração precisa ser fruto de um esforço coletivo. Esse esforço está apenas começando, mas já faz uma enorme diferença na vida de muitas pessoas.
*Os nomes do casal entrevistado foram alterados para preservar a identidade e garantir o anonimato.
*Todos os nomes e imagens de ex-dependentes químicos citados no texto foram utilizados com autorização dos próprios.
Credits:
Por Emelly Alves e Iris Sales